quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O documentário Santo Forte de Eduardo Coutinho traz uma situação paradoxal. Possui todo caráter realista do documentário, entrevistando pessoas reais com suas histórias pessoais, mas que falam de suas experiências místicas (de fé, espiritualidade, transcendência) que de modo algum podem ser filmadas. O pacto com o expectador, por isso, é mais tênue. O realismo se torna ficcional ou fantástico. Ele precisa acreditar nas histórias (reais?) contadas pelos personagens sem enxergar o sobrenatural que os envolve, salvo se o expectador também enxergue espíritos.

Os relatos possuem tamanha força que conseguem fazer com que o maior dos céticos acredite, ao menos, que aquelas pessoas creem no que dizem. O fato dele se passar em uma favela sugere várias interpretações. Percebe-se que ali a fé é uma companheira para enfrentar as agruras do cotidiano. Sem ela restaria apenas desesperança e frustração. Ali é como se a fé fizesse o papel de amparo que o Estado não faz. Deus, Exu, Nossa Senhora ou a Pomba Gira são importantes para não deixar que aquelas pessoas e seus familiares não morram de fome ou que ao menos sobrevivam com alguma dignidade. Curioso notar que estas experiências místicas confortam pessoas que vivem em situação de extrema pobreza e marginalidade. Parece ser reconfortante para elas estarem, ao menos no plano espiritual, em contato direto com aqueles únicos que são capazes de melhorar suas vidas no plano terrestre. Saber que alguém com mais poder, um “Santo Forte” que olha por eles é importante para encontrar um sentido ou força para superar o cotidiano e transcender sua realidade. “No desejo do outro, haveria o desejo de não ser tomado como pouca coisa” (Comolli, Ver e Poder, pag. 89).

Percebe-se que as pessoas filmadas estão muito seguras e confortáveis para falar sobre suas experiências e vida. Coutinho conseguiu encontrar um bom equilíbrio entre escutar e questionar que possibilitou relatos bem íntimos com também fugir do que seria o tema central do documentário. Os personagens souberam usar de sua auto- mise-em-scène para falar de sua vida, cotidiano, amor pelos companheiros, etc. “É preciso filmar de muito perto, como uma orelha, mais do que como um olhar.” (Comolli, ver e poder, pag.55)

Acredito que a personagem que mais soube usar deste artifício foi Dona Tereza. Com sua oratória perfeita, ela rouba a cena não apenas com seus relatos, mas com sua forma de contá-los. Eleva e diminui o tom da voz para dar mais emoção aos eventos que narra, e coloca pausas dramáticas que apreendem totalmente a atenção do ouvinte. Sem falar que é a mais velha que aparece no vídeo, portanto aquela que teve mais experiência com as entidades que narra e seria então a mais sábia no convívio com o sobrenatural.

Vale ressaltar que as experiências místicas podem também ser perturbadoras na vida daquelas pessoas. Os santos ou entidades podem ser bons e ruins e há relatos dramáticos de pessoas que tiveram suas vidas arrasadas pela ação destes seres. Segundo disseram, elas também possuem seus interesses e podem retirar ou amaldiçoar a vida daquelas pessoas. Assim é preciso estar sempre servindo e oferecendo bastante aos orixás para não ser prejudicado por quem queira o seu mal.

Esse intuito do cineasta de trazer para o documentário a realidade mais crua do encontro com seus entrevistados terminou por desvirtuar e estragar o clima da conversa com o pagamento por direitos de imagem para os entrevistados. Não que não devesse fazê-lo, mas a filmagem dessa cena expôs além da conta e constrangeu os entrevistados. Foi cruel com aqueles que lhe abriram sua casa, vida e boca de poucos dentes acreditando que faria algum sentido dividir sua história de vida e suas experiências. Mas, já que “tudo é real”, faltou mostrar quanto cada um recebeu, se foram quantias iguais, se alguns souberam da quantia antes ou só depois das filmagens e mesmo se esta quantia foi negociada com os entrevistados.

Coutinho tem pouco controle sobre seus documentários, uma vez que pouco intervém e abre muito espaço para as pessoas se expressarem, o que é bastante positivo. Mas deveria evitar situações que pouco ou nada diz sobre o tema proposto.

domingo, 16 de outubro de 2011

PALAVRA MUSICAL E ALTERIDADE

Na semana passada, assistimos ao Jardim Ângela, filme com o qual pudermos ter um contato, muitas vezes difícil e cheio de caminhos tortuosos com a “realidade” deste bairro na periferia de São Paulo que sente em seu dia a dia os efeitos da desigualdade social do nosso país e todos os desdobramentos desse processo. Lá está uma terminação do nervo, aonde a dor é sentida, desencadeada por estímulos múltiplos vindos do sistema complexo envolvendo indivíduos seres humanos, a organização em sociedade e o capitalismo ditando as regras do jogo. Ainda reflexivo sobre estas imagens, gostaria de compartilhar com os colegas duas leituras auditivas que me parecem encaixar bem neste momento dos estudos sobre imagem e alteridade:

- A primeira, muito cara à uma aproximação do que chamei “universo simbólico do crime e do rap” - repertório de signos e imagens que povoam leitura reflexiva de Washington sobre sua vida louca e arriscada no crime - é o álbum “O Rap é Compromisso” (2000) de Sabotage, rapper que representa um dos expoentes na linguagem do rap nacional e que consegue colocar a questão da pobreza e violência na favela onde viveu de maneira extremamente poética e muitas vezes lúdica em seus versos. Suas músicas são na verdade crônicas sobre o cotidiano da favela do Canão, no Brooklin, que fica na parte pobre da Zona Sul de São Paulo, próximo ao Jardim Ângela. Rimador habilidoso e cronista sagaz, Sabotage assim como Washington já trabalhou no tráfico, proximidade que facilmente transparece em sua intimidade ao tratar do crime. A conduta do respeito (modo de reconhecer as necessidades e sofrimentos do outro. "Respeito é pra quem tem") e os limites do comportamento e a proposição de igualdade são as noções que veiculam a relação com o outro. Ao contrário de Washington, Sabotage também foi baleado covardemente mas não sobreviveu, encerrando sua breve carreira que é tomada como marco e referência na produção de rap nacional, influenciando a maioria do que veio depois.

Mais info: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sabotage_(cantor)


[01] Introdução
[02] Rap é Compromisso
[03] Um Bom Lugar
[04] No Brooklin
[05] Cocaína
[06] Na Zona Sul
[07] A Cultura
[08] Incentivando o Som
[09] Respeito é Pra Quem Tem
[10] País da Fome
[11] Cantando pro Santo

LINK: http://www.easy-share.com/1908540481/Sabotage-Rap.e.Compromisso.rar


- A segunda, é o primeiro álbum da carreira solo de Arnaldo Antunes, Nome (1993). Neste disco com canções e exerimentações poético-sonoras, o músico/poeta vanguardista coloca relações com o outro, analisadas de forma lingüística, jogando com a forma como as palavras nos acessam os outros que povoam a nossa existência.

Arnaldo Antunes - Nome (1993)

01 - Fênis 02 - Diferente 03 - Nome 04 - Tato 05 - Cultura 06 - Se Não Se 07 - O Macaco 08 - Carnaval 09 - Campo 10 - Entre 11 - Luz 12 - Direitinho 13 - Não Tem Que 14 - Dentro 15 - Alta Noite 16 - Pouco 17 - Nome Não 18 - Soneto 19 - Imagem 20 - Armazém 21 - Acordo 22 - E Só 23 - Agora

LINK:https://rs765l32.rapidshare.com/#!download|765l34|344677690|_UQT1993_Arnaldo_Antunes_-_Nome.rar|61058|R~3AC036F79552D053C38EAB7C6DEDA668|0|0

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

EM CARTAZ















Jardim Ângela (Brasil | 71min | 2006)
Direção: Evaldo Mocarzel

Documentário realizado na periferia de São Paulo, mais precisamente no Jardim Ângela, como sugere o título, bairro que, durante muitos anos, liderou o ranking das regiões mais violentas da Grande São Paulo. Feito a partir de uma oficina de cinema ministrada pela Associação Cultural Kinoforum, o filme focaliza uma região dividida pelo tráfico de drogas e a violência: há os que aceitam a convivência promíscua com os traficantes e há os que jamais se envolveram com o crime.

sábado, 8 de outubro de 2011

TEXTOS PARA PRÓXIMA AULA

Se você não recebeu minha mensagem por e-mail, seguem links para download dos textos:

A justiça e o rosto do outro em Levinas 
A ética do documentário

No xerox, deixei outro capítulo do livro "Ética e Infinito" de Levinas, intitulado "A responsabilidade por Outrem".

Até quinta!

O Santo Forte de Eduardo Coutinho além do aspecto religioso - Segunda versão

O Santo Forte de Eduardo Coutinho além do aspecto religioso

Santo Forte não é apenas um filme sobre religiosidade, embora essa seja a temática que norteia toda a narrativa do documentário de 1999. Sem pretensões de empreender uma análise sobre o perfil religioso do brasileiro – isso seria usar o cinema para defender uma tese, algo que o cineasta Eduardo Coutinho abomina – Santo Forte é, antes de tudo, um filme a respeito da subjetividade.

Ao longo dos séculos, a religião tem funcionado como um instrumento de unificação para as sociedades. No mundo fragmentado da Idade Média, a Igreja Católica representava o principal elo entre a população, sendo responsável por congregar os diversos reinos da Europa Ocidental sob a bandeira única do catolicismo. Ainda hoje países declaram a sua religião oficial, demonstrando que a construção da sua identidade enquanto povo e nação perpassa o domínio da crença. A espiritualidade, por outro lado, é uma das características mais íntimas de um indivíduo. Experimentada de uma maneira visceral e por vezes arrebatadora, dificilmente transposta em palavras, quase nunca apreensível a outrem.

Em Santo Forte, Vera Dutra declara: “só quem um dia viveu uma intimidade com Deus, com Cristo, pode sentir exatamente a medida do que eu estou falando”. Apesar de se referir a um momento específico da vivência da personagem, a frase denota a própria natureza, inefável e particular, de cada uma das experiências relatadas durante as entrevistas. O ato de crer dá-se num espaço privativo e único, exclusivamente dentro do sujeito, inacessível para alguém que não ele mesmo. Até fazer com que os personagens empreendam o esforço da fala é uma tarefa que invade essa esfera privada, de forma quase agressiva, causando certo receio aos entrevistados.

Portanto é necessário, como Coutinho vem nos dizer, que se fomente, ali, uma atmosfera de cumplicidade. Segundo ele, o dinheiro não é capaz de resolver essa questão – e isso nos remete, inevitavelmente, às cenas de Santo Forte em que uma das integrantes da produção do documentário efetua a entrega do cachê aos entrevistados. Não basta pagar para que o sujeito se exponha, pois em revelar-se reside um risco que raramente o indivíduo está disposto a correr, mesmo em vista de uma compensação monetária.

É preciso criar um ambiente confortável para o personagem, em que ele se sinta à vontade para desenvolver o seu papel. Para Coutinho, esse patamar começa a ser construído desde o momento da pesquisa anterior ao filme, onde o pesquisador precisa mostrar educação e respeito com o outro. Somente nesses termos é que se pode alcançá-lo. Em seguida, é importante que todo o aparato de filmagem e a equipe ao seu redor não intimidem ou inibam o sujeito. É possível observar que alguns dos entrevistados de Santo Forte estão, a princípio, bastante incomodados. Mas, atento a esse detalhe, Coutinho estabelece a entrevista em um modelo de conversa, com um tom bastante informal, reduzindo a distância entre entrevistado e entrevistador. Isso diminui também a noção de autoridade envolvida nessa relação, o que possibilita maior liberdade aos personagens. Então, conforme essa conversa transcorre, os indivíduos vão se abrindo, dispostos a revelar a si mesmos perante as lentas da filmagem.

De acordo com o que o cineasta afirmou, o que ele pretende é “fazer um filme em que as pessoas construam seus personagens, porque na vida real nós construímos nossos personagens – no trabalho ou em casa, em qualquer lugar.” Aqui se instaura uma cena, ainda que ela não esteja presa a um roteiro. Coutinho admite que existe algo de invenção na postura dos entrevistados diante das câmeras, porém, ressalta que essa construção não difere daquele que cada um de nós realiza no seu dia-a-dia. Isso não interfere na veracidade da narrativa, ou – melhor dizendo – na honestidade do depoimento.

Em seu texto A política do documentário, Cezar Migliorin cita o conceito de fabulação de Deleuze, definido como um “fluxo de fala com a memória que renova e inventa um presente sem se ater a um passado imóvel (...). Inventar a si com uma memória que aparece como matéria-prima e não como um arquivo factual e mensurável.” As entrevistas concedidas em Santo Forte desenvolvem-se nessa espécie de campo. Sob o pretexto de falar a respeito da sua religião, o personagem narra a sua vida inteira, a sua história, passando por seus conflitos e inseguranças, suas realizações, – enfim, a sua intimidade.

Acontece que o espectador não tem acesso a essa intimidade, pelo contrário: o lugar do espectador é externo, e não há a pretensão de torná-lo um reduto de onisciência ou conhecimento privilegiado a respeito dos fatos. Os depoimentos não provam, e acima de tudo não o querem, a hegemonia de determinada religião ou de outra, nem mesmo a veracidade dos fatos contados. A questão central do Santo Forte não é promover a crença, nem em Deus, nem no Espiritismo, nem no Cristianismo, e nem provar que manifestações e eventos espirituais são reais – ou, sequer, possíveis. O que realmente importa no filme de Coutinho é a capacidade que ele traz de apreender a natureza mais rudimentar e pessoal do outro, através das experiências relatadas pelos entrevistados.

Nas constantes tomadas em que mostra os ambientes vazios, o cineasta retrata cada um desses espaços como um lugar fantástico; mas não por afirmar que ali ocorreu uma manifestação espiritual, e sim porque existe um indivíduo que crê que um evento dessa natureza se passou naquele ambiente. Novamente, entra em jogo a questão da subjetividade: a crença particular, íntima. Da mesma forma, o documentário utiliza imagens de cunho religioso (a bíblia cristã, as estátuas dos orixás da Umbanda) não como alegoria ou meramente um acessório visual, mas para reforçar a construção da narrativa empreendida pelo sujeito. Menos importante do que aquilo em que o sujeito acredita – seja o Espiritismo Umbandista ou o Protestantismo – é a forma como ele se relaciona com essa crença. O filme de Coutinho discorre sobre a maneira como os indivíduos enxergam a si mesmos, além, e não somente através, do aspecto religioso.

Ao longo do documentário, o Santo Forte consegue envolver cada um dos seus personagens em uma atmosfera peculiar de mistério. O assunto em questão, a crença religiosa, conduz o público rumo a um estado de perplexidade. Não só aparece como um aspecto desconhecido e inexplicável; ele intriga, desperta a curiosidade em relação a esse outro, ao sujeito que se mostra na tela.

Por último, é importante ressaltar que tais personagens mostram-se sem, de fato, desvendarem-se. Pelo menos não por completo. Afinal, mesmo que o sujeito aceite se revelar através de um testemunho, – o que compreende um exercício de exposição da subjetividade – a essência do que o seu depoimento trás permanece oculta. Ao espectador não é permitido desfrutar da intimidade da crença, nem partilhar a experiência do personagem, pois tudo isso ainda é mantido além dos domínios do seu conhecimento.

Referências:

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MIGLIORIN, Cezar. “A política do documentário”. In: FURTADO, Beatriz. Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, vídeo arte, games... (volume 1). São Paulo: Hedra, 2009.

SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas, 2009.

Entrevista: Eduardo Coutinho. Revista e, nº 109. Junho, 2006. Disponível em:http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=250&Artigo_ID=3883&IDCategoria=4282&reftype=2

sábado, 1 de outubro de 2011

Os Lugares da Crítica em "Um Lugar ao Sol" e "Avenida Brasília Formosa", de Gabriel Mascaro

Nos filmes “Um lugar ao Sol” e “Avenida Brasília Formosa” vemos duas formas diferentes de se filmar, de se posicionar diante do outro e de estar no mundo. Ambas relacionadas a um conteúdo crítico muito visível. Começaremos pela forma dos filmes, que definem grande parte do lugar da critica envolvida em ambas as obras.

Em “Um Lugar ao Sol” os filmados são os ricos, que receberam uma forma de tratamento bastante convencional no documentário e na televisão. Eles nos dão alguma medida das suas vidas por meio do que dizem em entrevistas e em alguns planos de suas casas, onde quase não os vemos em situações cotidianas como é largamente mostrado em “Avenida Brasília Formosa. Vemos no máximo os ambientes luxuosos de suas casas, na maioria das vezes vazios. Planos belos que remetem aos editoriais de decoração, mas que guardam algum movimento de câmera singelo, ou uma relação semântica com as imagens anteriores ou posteriores, acabam então construindo sensações para além dos significados. Outras imagens recorrentes são das grandes cidades onde se encontram as coberturas. Imagens que pela estética remetem, na maioria das vezes, à possível sensação de superioridade dessas pessoas, mas ao mesmo tempo refletem uma espécie de solidão e vazio da alma. Assim o diretor parece pretender denunciar esses ricos, estes que são vangloriados em revistas e jornais por terem isso ou aquilo. Lembra também um trabalho de filmar o inimigo, de enfrentamento com ideologias opostas, mas ao mesmo tempo de ouvir e dar a voz, deixar a auto-misé-en-scene, ainda que isso possa ser utilizado de modo a colocá-los em situações constrangedoras e contraditórias. Remetamos à uma cena onde isso se torna bastante claro, na conversa com o dono da maior boate da América Latina. Gabriel monta essa entrevista com declarações que a qualquer um pareceriam absurdas (comentários quase facistas são apresentados), e em determinado momento ele interrompe a fala do entrevistado e pergunta secamente: “O que é poder?” Ele responde qualquer coisa, e mais uma vez interrompe: “Como você lida com o poder?” mais uma vez uma resposta qualquer, que na realidade parece não ser importante. Essa cena parece revelar principalmente a situação de embate declarada pelo diretor, que poucos minutos depois ainda põe o fim de uma entrevista em que o entrevistado diz achar positivo a temática do documentário, no sentido de a maioria dos documentários brasileiros tratarem de assuntos relacionados à pobreza. Mal sabe ele que essa sua própria fala seria usada de maneira irônica na montagem.

Em “Avenida Brasília Formosa” é a vez dos pobres, filmados em alguma medida muito parecida com as formas da ficção. Entretanto não há uma narrativa muito clara, a montagem anula muitas das possíveis conexões de enredo, vemos os personagens nas situações corriqueiras de suas vidas, nas suas casas, na praia e no trabalho, principalmente. Não há raccords entre cada cena própria de cada personagem, inclusive o filme não se atém a isso, a não ser em alguns momentos, aparentemente encenados ou programados, em que os personagens se encontram por algum motivo. Há uma espécie de montagem paralela infinita em que essas pessoas jamais se encontrariam, se não fosse por essa possível intervenção do diretor. Suas vidas são relacionadas por um viés temático que somente um olhar atencioso seria capaz de estabelece. Nesses momentos a lógica da montagem clássica é deixada de lado, em virtude mesmo de uma não construção ideológica sobre as vidas desses personagens. Ver “Avenida Brasília Formosa” é um pouco do sumo dessas vidas na favela, em que se é possível viver tranquilamente. Problemas sociais não vêm à tona com tanta facilidade, pois não é isso que se pretende tematizar. É o próprio viver que é tematizado, em nome talvez de ir contra as perspectivas estereotipadas do favelado sofredor.

Por meio dos recursos formais de cada filme é possível perceber claramente o que está em jogo, as relações da desigualdade social no Brasil, de ricos que não estão nem ai para os pobres, e de pobres que vivem independentes dos ricos. Em “Um Lugar ao Sol”, pessoalmente, esperava a completa retaliação das classes de ricos, e é isso que vemos. Em “Avenida Brasília Formosa” o esperado eram as tematizações políticas e econômicas dos reabrigados, e não é isso que ocorre. Para alguns o filme pode ate mesmo revelar um esvaziamento politico e “Um Lugar ao Sol” um exagero, desnecessária exposição dessas pessoas. De toda forma refuto as duas percepções. O filme dos ricos realiza um procedimento contrário em relação a representação, uma vez que esses ricos diariamente são mostrado pelas mídias como pessoas de vidas exemplares, padrão de projetos pessoais. Realizar um filme aos moldes de “Avenida Brasília Formosa” seria uma reiteração desses discursos, todos sabemos que os ricos tem suas maneiras de fruírem a própria vida. Além do que, como anuncia o letreiro no inicio do filme, de 157 donos de coberturas procurados pela produção somente 9 deles aceitaram participar. Dessas 9 pessoas, considerando a vida que levam e seus ideais de privacidade/isolamento e conforto de acordo com o que é mostrado no filme, provavelmente nenhuma aceitaria a presença de um equipe cinematográfica acompanhando suas rotinas. Dessa forma essas pessoas anunciam de premissa a forma como querem ser filmados, superficialmente, por meio de entrevistas que não lhe tomem tempo, bem próxima a televisão, sem saberem que o cinema guarda o gérmen da destruição.

Em “Avenida Brasília Formosa” o diretor também segue o fluxo contrário do lugar comum das representações. Não dramatizações e conteúdos exclusivamente políticos, e sim pessoas em situações comuns, dando margem a interpretações abertas. Não se trata mais do discurso de que ser pobre é passar por necessidade, tristezas e impossibilidades. É uma vida comum, tão comum quanto a vida dos ricos filmados outrora em “Um Lugar ao Sol”. Isolar-se na sua cobertura, repleto de câmeras e solidões pode ser pior que a vida nas favelas do Recife que têm a liberdade de fruir na sua própria cidade, e dos pescadores, que em alto mar podem se entregar.

A questão é porque realmente acreditamos neste outro? O que nos faz sentir empenhados em ver um filme que trate sobre a relação, ou sobre a vida de outrem? Talvez seja porque os homens, mesmo se relacionando varias horas por dia e há muito tempo, não aprenderam ainda a se relacionarem. As situações de “guerras” (pensemos em todas as possíveis significações da palavra guerra) travadas no mundo afora mostram a tristeza da vida dos homens diante dos outros. Outrora é a nossa própria vida que se depara com uma tristeza do mundo, seja por meio de alguma ação ou injustiça ou pobreza, e sempre tem a ver com o outro ou os outros. Isso nos acomete em algum momento, e é isso que importa para o homem no fim das contas, ser pobre ou rico, seja do que for, de alma, de bens materiais, de conhecimento, de amigos, de momentos felizes, de amantes, do que for, e o outro é a razão maior da não plenitude desses conceitos. Parece que é realmente por isso que todos querem ser ricos e prolongam as piores situações do mundo, se acostumam com a concorrência. O dinheiro é a possibilidade da felicidade, de se ter o que quiser de matéria e vida, de se comprar pessoas, viagens, espaços, de ser um diretor mesmo do cinema da própria vida, e talvez o cinema tenha nos provado isso, a possibilidade de com o dinheiro se moldar a vida, construir o que se quer. Não é também o próprio cinema que nos substitui a vida, com seu voyeurismo perfeito, com suas ilusões de vivencias em cotidianos, em situações banais, em situações espetaculares, mas não é o próprio cinema que nos ensina a viver? Nos perdoa por não vivermos porque ele mesmo existe. Não seria então a resposta do cinema contemporânea ao capitalismo, em termos da possibilidade de se ter estética nas situações mais cotidianas e adversas, num fluxo contrário à lógica do dinheiro e do espetáculo, no qual o cinema clássico tanto defendeu. Viés esquerdista neste novo cinema, indo contra a necessidade do acumulação de bens, indo contra o espetáculo sugerido, atendo-se à simplicidade da vida, das experiências estéticas ordinárias, tornando possível e bela uma vida simples.