sábado, 1 de outubro de 2011

Os Lugares da Crítica em "Um Lugar ao Sol" e "Avenida Brasília Formosa", de Gabriel Mascaro

Nos filmes “Um lugar ao Sol” e “Avenida Brasília Formosa” vemos duas formas diferentes de se filmar, de se posicionar diante do outro e de estar no mundo. Ambas relacionadas a um conteúdo crítico muito visível. Começaremos pela forma dos filmes, que definem grande parte do lugar da critica envolvida em ambas as obras.

Em “Um Lugar ao Sol” os filmados são os ricos, que receberam uma forma de tratamento bastante convencional no documentário e na televisão. Eles nos dão alguma medida das suas vidas por meio do que dizem em entrevistas e em alguns planos de suas casas, onde quase não os vemos em situações cotidianas como é largamente mostrado em “Avenida Brasília Formosa. Vemos no máximo os ambientes luxuosos de suas casas, na maioria das vezes vazios. Planos belos que remetem aos editoriais de decoração, mas que guardam algum movimento de câmera singelo, ou uma relação semântica com as imagens anteriores ou posteriores, acabam então construindo sensações para além dos significados. Outras imagens recorrentes são das grandes cidades onde se encontram as coberturas. Imagens que pela estética remetem, na maioria das vezes, à possível sensação de superioridade dessas pessoas, mas ao mesmo tempo refletem uma espécie de solidão e vazio da alma. Assim o diretor parece pretender denunciar esses ricos, estes que são vangloriados em revistas e jornais por terem isso ou aquilo. Lembra também um trabalho de filmar o inimigo, de enfrentamento com ideologias opostas, mas ao mesmo tempo de ouvir e dar a voz, deixar a auto-misé-en-scene, ainda que isso possa ser utilizado de modo a colocá-los em situações constrangedoras e contraditórias. Remetamos à uma cena onde isso se torna bastante claro, na conversa com o dono da maior boate da América Latina. Gabriel monta essa entrevista com declarações que a qualquer um pareceriam absurdas (comentários quase facistas são apresentados), e em determinado momento ele interrompe a fala do entrevistado e pergunta secamente: “O que é poder?” Ele responde qualquer coisa, e mais uma vez interrompe: “Como você lida com o poder?” mais uma vez uma resposta qualquer, que na realidade parece não ser importante. Essa cena parece revelar principalmente a situação de embate declarada pelo diretor, que poucos minutos depois ainda põe o fim de uma entrevista em que o entrevistado diz achar positivo a temática do documentário, no sentido de a maioria dos documentários brasileiros tratarem de assuntos relacionados à pobreza. Mal sabe ele que essa sua própria fala seria usada de maneira irônica na montagem.

Em “Avenida Brasília Formosa” é a vez dos pobres, filmados em alguma medida muito parecida com as formas da ficção. Entretanto não há uma narrativa muito clara, a montagem anula muitas das possíveis conexões de enredo, vemos os personagens nas situações corriqueiras de suas vidas, nas suas casas, na praia e no trabalho, principalmente. Não há raccords entre cada cena própria de cada personagem, inclusive o filme não se atém a isso, a não ser em alguns momentos, aparentemente encenados ou programados, em que os personagens se encontram por algum motivo. Há uma espécie de montagem paralela infinita em que essas pessoas jamais se encontrariam, se não fosse por essa possível intervenção do diretor. Suas vidas são relacionadas por um viés temático que somente um olhar atencioso seria capaz de estabelece. Nesses momentos a lógica da montagem clássica é deixada de lado, em virtude mesmo de uma não construção ideológica sobre as vidas desses personagens. Ver “Avenida Brasília Formosa” é um pouco do sumo dessas vidas na favela, em que se é possível viver tranquilamente. Problemas sociais não vêm à tona com tanta facilidade, pois não é isso que se pretende tematizar. É o próprio viver que é tematizado, em nome talvez de ir contra as perspectivas estereotipadas do favelado sofredor.

Por meio dos recursos formais de cada filme é possível perceber claramente o que está em jogo, as relações da desigualdade social no Brasil, de ricos que não estão nem ai para os pobres, e de pobres que vivem independentes dos ricos. Em “Um Lugar ao Sol”, pessoalmente, esperava a completa retaliação das classes de ricos, e é isso que vemos. Em “Avenida Brasília Formosa” o esperado eram as tematizações políticas e econômicas dos reabrigados, e não é isso que ocorre. Para alguns o filme pode ate mesmo revelar um esvaziamento politico e “Um Lugar ao Sol” um exagero, desnecessária exposição dessas pessoas. De toda forma refuto as duas percepções. O filme dos ricos realiza um procedimento contrário em relação a representação, uma vez que esses ricos diariamente são mostrado pelas mídias como pessoas de vidas exemplares, padrão de projetos pessoais. Realizar um filme aos moldes de “Avenida Brasília Formosa” seria uma reiteração desses discursos, todos sabemos que os ricos tem suas maneiras de fruírem a própria vida. Além do que, como anuncia o letreiro no inicio do filme, de 157 donos de coberturas procurados pela produção somente 9 deles aceitaram participar. Dessas 9 pessoas, considerando a vida que levam e seus ideais de privacidade/isolamento e conforto de acordo com o que é mostrado no filme, provavelmente nenhuma aceitaria a presença de um equipe cinematográfica acompanhando suas rotinas. Dessa forma essas pessoas anunciam de premissa a forma como querem ser filmados, superficialmente, por meio de entrevistas que não lhe tomem tempo, bem próxima a televisão, sem saberem que o cinema guarda o gérmen da destruição.

Em “Avenida Brasília Formosa” o diretor também segue o fluxo contrário do lugar comum das representações. Não dramatizações e conteúdos exclusivamente políticos, e sim pessoas em situações comuns, dando margem a interpretações abertas. Não se trata mais do discurso de que ser pobre é passar por necessidade, tristezas e impossibilidades. É uma vida comum, tão comum quanto a vida dos ricos filmados outrora em “Um Lugar ao Sol”. Isolar-se na sua cobertura, repleto de câmeras e solidões pode ser pior que a vida nas favelas do Recife que têm a liberdade de fruir na sua própria cidade, e dos pescadores, que em alto mar podem se entregar.

A questão é porque realmente acreditamos neste outro? O que nos faz sentir empenhados em ver um filme que trate sobre a relação, ou sobre a vida de outrem? Talvez seja porque os homens, mesmo se relacionando varias horas por dia e há muito tempo, não aprenderam ainda a se relacionarem. As situações de “guerras” (pensemos em todas as possíveis significações da palavra guerra) travadas no mundo afora mostram a tristeza da vida dos homens diante dos outros. Outrora é a nossa própria vida que se depara com uma tristeza do mundo, seja por meio de alguma ação ou injustiça ou pobreza, e sempre tem a ver com o outro ou os outros. Isso nos acomete em algum momento, e é isso que importa para o homem no fim das contas, ser pobre ou rico, seja do que for, de alma, de bens materiais, de conhecimento, de amigos, de momentos felizes, de amantes, do que for, e o outro é a razão maior da não plenitude desses conceitos. Parece que é realmente por isso que todos querem ser ricos e prolongam as piores situações do mundo, se acostumam com a concorrência. O dinheiro é a possibilidade da felicidade, de se ter o que quiser de matéria e vida, de se comprar pessoas, viagens, espaços, de ser um diretor mesmo do cinema da própria vida, e talvez o cinema tenha nos provado isso, a possibilidade de com o dinheiro se moldar a vida, construir o que se quer. Não é também o próprio cinema que nos substitui a vida, com seu voyeurismo perfeito, com suas ilusões de vivencias em cotidianos, em situações banais, em situações espetaculares, mas não é o próprio cinema que nos ensina a viver? Nos perdoa por não vivermos porque ele mesmo existe. Não seria então a resposta do cinema contemporânea ao capitalismo, em termos da possibilidade de se ter estética nas situações mais cotidianas e adversas, num fluxo contrário à lógica do dinheiro e do espetáculo, no qual o cinema clássico tanto defendeu. Viés esquerdista neste novo cinema, indo contra a necessidade do acumulação de bens, indo contra o espetáculo sugerido, atendo-se à simplicidade da vida, das experiências estéticas ordinárias, tornando possível e bela uma vida simples.

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