quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Primeiro ensaio - Boca de lixo, de Eduardo Coutinho.

O documentário "Boca de lixo" tem início com a imagem de animais se alimentando no lixo, corvos e porcos. Talvez essa menção contribua para o sentimento de animalização do homem que se origina da cena seguinte, onde o caminhão começa a despejar os resíduos, e os homens se atracam por ali para conseguirem as melhores porções, em uma disputa acirrada pelo “novo lixo”. Os cineastas, por sua vez, se misturam àquela situação, na tentativa de imergirem o quanto fosse possível naquela realidade.

A princípio, os trabalhadores fugiam da câmera, desviavam seus rostos, escapando de serem filmados. Por estranhamento, vergonha ou timidez. Aos poucos, alguns se arriscam, começando pelos jovens, que passam a indagar o porquê daquela filmagem. O cineasta responde que as câmeras estavam ali para testemunhar como era a vida ali. O garoto, ao receber a voz e vez que a câmera concede, exprime então o que gostaria que fosse ouvido, ou melhor, por quem gostaria de ser ouvido: o então presidente Fernando Collor.

Ao serem indagados sobre o trabalho realizado ali na “boca de lixo”, muitos discursos divergem. Um ponto, no entanto, é recorrente: a declaração de que não estão roubando. Pode-se concluir daí o desejo dessas pessoas de não serem marginalizadas, de serem vistas como trabalhadoras que são, exercendo funções como em todos os outros trabalhos do mundo. Em outros aspectos, no entanto, como foi dito, as posições não coincidem. Há quem diga que enquanto houver lixo, lá estará sua fonte de renda. Outros o vêem como um trabalho temporário, como o marido de Lúcia, que, despedido durante as filmagens do longa, recorre ao lixo para complementar a renda da casa naquele período de desemprego. Algumas mulheres consideram o trabalho no lixo muito melhor do que trabalhar em casa de família, “servindo as madames”, ganhando um salário mínimo. Cícera, por exemplo, destaca a autonomia que o trabalho no lixo concede. O serviço ali é também visto como alternativa para aqueles que não procuram outra espécie de emprego por “terem preguiça”, por quererem “comer fácil”, o que é possibilitado pela presença de alimentos reaproveitáveis nos resíduos despejados.

Há quem encha o peito de orgulho por trabalhar e ter sido criada ali. Lúcia destaca o caráter da união na boca de lixo, onde todos interagem e há um clima amistoso, comparado ao que ela viveu no cultivo da cana no Paraná. Lúcia ressalta ainda que todos são diferentes, dentro e fora do lixo. Em casa, ela cuida das duas filhas e tem outros tipos de conduta, que contrastam com a extroversão manifestada em seu ambiente de trabalho.

Há visões otimistas, como a Nirinha, que tem a boca de lixo como fonte de renda em níveis mais amplos que os demais catadores. De acordo com ela, o material por ela arrecadado e depois vendido tem o preço do mercado comum, e ela chega a arrecadar até 4 toneladas por quinzena. Outras, no entanto, alegam que “bom não é”, mas é de onde se é possível tirar dinheiro naquele momento. A mesma moça que relata isso, destaca que preferia fazer serviços domésticos, onde trabalharia limpa e faria refeições adequadas, ao contrário de apenas jantar, como acontece com a vida no lixo. Contrastando com esse sentimento de impotência, surge a personagem da Cícera, uma senhora de extremo bom humor e simplicidade. Ela exala desprendimento, sem medo da câmera, simplesmente porque não está roubando e, portanto, não tem porque se envergonhar. Sua neta aparece também como personagem envolvente, pois é uma jovem que mantém o sonho de ser cantora sertaneja, e não deixa o sorriso morrer em seus lábios.

Pelas filmagens, observam-se diferentes atividades desenvolvidas no lixão, como o futebol entre os garotos, a leitura de jornais, o jogo de baralho, o descanso.

Em determinado momento, surge uma denúncia: o despejo do lixo hospitalar de forma inadequada. De acordo com uma das trabalhadoras, até bebês recém-nascidos já foram encontrados. Seu pé se achava cortado por uma agulha hospitalar. Imaginemos as implicâncias de uma exposição como essa. Esta mulher declarou considerar o trabalho no lixo perigoso, e apesar de possibilitar o sustento de seus filhos, ela não levaria eles àquela situação.
Surge na trama o Senhor Enock, homem de aparência sábia, daqueles carregados pela experiência da vida. Ao ser indagado sobre o apelido de “Papai Noel”, ele destaca esse aspecto, considerando que era correto mesmo que ele fosse tido como o pai daquele lugar. O senhor reconhece o perigo do trabalho, onde muitos podem adoecer – mas alega já ter trabalhado em inúmeros lixões pelo Brasil. Assim como em outras inúmeras atividades, do Acre ao Rio Grande do Sul, passando pelo Amapá, por São Paulo. O sentimento presente, assim como em outros momentos, é o de conformidade – o lixo é o que aquelas pessoas de fato têm. Seu Enock define o lixo como fim e começo – fim para quem o descarta, começo para quem o reencontra e dele depende. Sua casa foi mobiliada parte pelo que foi encontrado no lixo – um pôster de ninjas, um relógio na parede. “O que não serve pro rico, pode servir pro pobre”, foi dito por alguma daquelas bocas famintas.

De um lado, o Senhor Enock, sua idade e experiência. De outro, um jovem rapaz, trabalhando no lixo há dois dias, após ser demitido de seu emprego de mecânico. Ao ser indagado o porquê de não ter vergonha alguma perante as câmeras, o jovem não hesita: é humano, brasileiro e livre, e tem o direito de dizer o que quer que pense.

Jurema aparece como última personagem “destacada” pelo documentário. Sua primeira frase já diz muito sobre sua personalidade: ela diz ter nascido ali, no meio de um monte de papelão, ter sido “largada ali”, e por ali ter ficado. Jurema é uma mulher decidida, bem resolvida. Não quer que os catadores de lixo sejam filmados como porcos, passem a impressão de que comem lavagem. Por isso a resistência em se deixar entrevistar. Jurema quer deixar claro que parte do lixo manejado é para extração de material reciclável para venda. Outra porção, carregada em outros caminhões, é que possui comida, que é parte direcionada aos porcos – que grande parte dos trabalhadores possui – e outra parte, a que estiver mais bem conservada, entre frutas e legumes, vira alimentação. Com sete filhos, Jurema diz querer quantos mais Deus quisesse dar a ela. E que não, não era difícil criá-los. Afinal, Deus ajuda. Os filhos passaram a impressão de que se criavam sozinhos. A mãe de Jurema se adiantou dizendo que não ajudava a cuidar: afinal, teve doze e nenhum auxílio.

Destaco, de forma pessoal, a presença dos casais na produção. Dona Cícera mora há nove anos com Antônio, que não é o avô de sua neta. Sua neta aparece ao lado do namorado. Lúcia mora e tem suas duas filhas com seu namorado de infância, estudaram juntos, capinaram juntos, e são companheiros que dividem as responsabilidades de manter a casa. Senhor Enock, o Barbudo, é casado com sua paraibana. Jurema tem sete crianças sorridentes, nascidas de um romance que se originou na boca de lixo, passou para um café e em seguida para a cama, “vapt-vupt”, nas palavras de Jurema. E quanto mais filhos viessem, mais amor e emoção haveria, acabando com qualquer briga que houvesse entre o casal.

O documentário traça uma linha do início ao fim, mostrando as fotografias dos personagens a eles próprios. Muitos poderiam estar vendo seus rostos impressos pela primeira vez. As faces vão da infância à velhice, olhos profundos, quase sorrisos, ausência de dentes, excesso de rugas, mãos fortes, peles fortes, corpos firmes. São as pessoas que constroem suas vidas no lixo, e nele são construídas.

por Camila Braga

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