terça-feira, 27 de setembro de 2011


Crônica de um verão: o sincero e o encenado


Morin: - E esse é o problema básico. Se eles foram atores ou exibicionistas, nosso filme é um fracasso. Mas eu estou certo, na minha opinião, que eles não são nada disso.

Rouch: - Mas não se pode ter certeza.




Ao começarem Crônica de um verão, Morin e Rouch aspiravam produzir um filme sobre o outro, para pensar o outro, mas a conclusão que todo movimento do filme nos traz é que o outro filmado também está pensando e questionando não apenas a si mesmo, mas a vida que o rodeia, aos outros que também foram filmados, a câmera que os filma, o ato de serem filmados, o próprio filme. A alteridade atravessa o longa a cada oportunidade e os realizadores lhe permitem uma liberdade tão grande que, ao fim da experiência, ela claramente os confronta.


Crônica de um verão seria uma ação em busca da verdade em seu estado mais simples (se ele existe) e corriqueiro, na reflexão sobre questões da vida cotidiana, na mesa onde as pessoas se sentam para comer e, à vontade, conversar sobre sua realidade. Entretanto, o que surge daí é justamente a questão da representação. O filme de forma indireta – e talvez não tão esperada - explora essa questão em quase todas as conversas exibidas e leva-a ao extremo, ao permitir que os filmados reflitam sobre o produto e que os realizadores (no caso Morin) discutam o posicionamento dos participantes. A questão continua claramente “inconveniente” e sem uma solução até o fim do filme.


Acredito que a grande problemática que emerge da forma como aquelas vidas foram filmadas não é mais ‘até que ponto eles estão sendo verdadeiros’, mas ‘até que ponto eles encenam’, isso fica bem colocado a partir da fala de Marilú, quando ela diz: “Eu não tenho o direito de me matar... Isso seria uma encenação”, ou quando os participantes são colocados juntos para assistir o filme e discutir sobre ele e Marceline levanta um paradoxo, ao declarar sobre a cena em que supostamente conversa com seu pai, o seguinte: “Talvez quando eu estava dizendo as palavras, eu estava revivendo o passado, sentindo aquilo. Mas eu estava atuando entre as falas”.


A análise realizada pelos próprios personagens sobre o filme, permite perceber que Crônica de um verão é um filme também, ou ainda no mesmo sentido, sobre a diferença. Seja a diferença nos modos de se colocar e se expressar diante da câmera, as diferenças de raça e de etnia, as divergências de princípios, são as diferenças de uns para os outros que levantam a questão da representação e a tornam tão importante e preocupante. A câmera realiza bem o seu papel de provocadora, com seu poder de ampliar tanto as diferenças, o que existe de mais individual, e estabelecer uma tensão que se desenrola por todo o longa e parece se romper ao fim, quando o produto de Morin, Rouch e dos participantes é colocado a mesa para ser degustado e analisado.


O conflito entre representação e verdade assola os indivíduos filmados ao longo de toda a produção, eles não questionam suas posturas apenas por seus próprios sentimentos e emoções, como colocado por Marceline e Marilú, mas eles entendem que suas atitudes atravessarão outras pessoas, ao mesmo tempo que se preocupam com a veracidade na postura dos outros, pois são atravessados por ela. Ao fim do longa um dos participantes deixa isso claro, “Marilú não atua em frente a câmera. Ao contrário, ela está descaradamente a procura dela mesma. O mesmo vale para Marceline, ela fala para ela mesma. E nós ficamos embaraçados, porque nós nos sentimos intrusos”.

O filme nos mostra, para além das discussões e opiniões dos filmados, que a representação não é necessariamente uma negação da verdade e sob o viés da diferença, que é o que conduz toda a preocupação e as discussões acerca da representação no filme, é possível entender que os conceitos de verdadeiro e falso são construídos na alteridade. São muito mais conceitos partilhados que pessoais.


A opção dos realizadores ao fim de Crônica de um verão, de colocar os participantes diante uns dos outros, logo após terem sido colocados diante do que deles foi filmado, revela para os próprios realizadores ‘esse lugar em que lugar se conceitua e se decide sobre o sincero e o encenado’. Não está completamente no eu, nem no outro, está na relação. Morin, talvez indignado com a postura daqueles que julgaram o filme “indecente” e “se sentiram embaraçados” pela forma como alguns abriram suas vidas diante da câmera, afirma “que isso significa que tenhamos chegado a um estágio que nós questionamos a verdade quando não é uma verdade de todo mundo”, quando a verdade de alguns é diferente da verdade de outros.


De acordo com Morin, os realizadores desejavam “fazer um filme sobre o amor” e acabaram por fazer “uma espécie de filme sobre a diferença”. Talvez tenham ‘apostado no cavalo errado’. O que realmente havia de comum entre todos os personagens e suas histórias era a diferença, talvez por isso Morin acreditasse num filme sobre o amor, um filme que demonstrasse que as pessoas entendem como são diversas e, portanto, aceitam bem o que há de diferente no outro, estão abertas e são receptivas as diferenças. E o que aconteceu foi que a diferença, nessa situação em que veio intermediada pela câmera, se tornou hipocrisia. É como se o Eu de alguns personagens fosse absoluto, e tudo que não pertence a esse Eu, que o contradiz, não pudesse existir de fato, não pudesse ser verdadeiro. É falso.


Enfim, verdade e representação na vida cotidiana tratariam-se não só de fatos, mas também de convenções - a verdade que não é absoluta, é construída na tensão das diferenças. Essas convenções parecem se formar na existência da diferença e da dificuldade em aceita-la.



Por Eveline Xavier

Texto atualizado

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