(Ensaio corrigido)
(al.te.ri.da.de)
sf.
1. Qualidade ou natureza do que é outro, diferente.
2. Fil. Fato de ser um outro ou qualidade de uma coisa ser outra
[F.: Do lat. alter, 'outro', + -(i)dade.]
Primeiro, uma seqüência de pessoas que correm e rostos que se escondem. Desconfiança. Uma câmera intrusa. Até que, enfim, uma garota a encara e sorri.
Vazadouro de Itaoca, Rio de Janeiro, 1992. Mais um entre os vários “lixões” existentes no país. Boca de Lixo. Nome pelo qual ele é conhecido e nome do documentário de Eduardo Coutinho gravado no local. Local este que não é o foco do filme. O que mais interessa são as histórias daqueles que ali se encontram.
A questão do roteiro (ou, melhor dizendo, do não-roteiro)
Uma constante na obra de Coutinho. Escolher um lugar, visitá-lo e conhecer as pessoas que ali estão. A busca pelo imprevisto. Um processo que, em certa medida, dispensa um item, aparentemente, tão caro a um diretor: o roteiro.
Filmar os homens reais no mundo real significa estar às voltas com a desordem das vidas, com o indecifrável dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário. (COMOLLI, 2008, p. 176)
É assim que somos levados por ele ao dia-a-dia daqueles que ali trabalham. Sem as amarras de um roteiro predeterminado, Coutinho deixa o processo de gravação se revelar ao longo do filme. Isso incluiu a permanência de “falhas” não editadas, como a recusa inicial de parte dos catadores em colaborar a gravação ou as criticas à “intromissão” do diretor e sua equipe.
A questão do outro
Os sujeitos filmados por Coutinho. Os outros. Aqueles que vivem uma realidade oposta à do diretor e dos espectadores. Aqueles que, enfim, se tornam centro de uma história. O foco. A motivação. Um “esforço de singularização das trajetórias de alguns catadores (LINS; MESQUITA, 2008, p. 29)”.
O outro que tem total liberdade para se esconder, recusar responder aos questionamentos propostos, mas que, ao aceitar o desafio, tem à sua disposição a câmera, a atenção daqueles que o estão observando. Uma “potência política” da câmera: a oportunidade de, confrontando-a, confrontar estereótipos. “Todo mundo aqui tá trabalhando. Não tem ninguém roubando aqui dentro”, diz um dos catadores.
Em Boca de Lixo, nota-se a proposta de resistir ao estigma que marca a representação pública de um grupo social marginalizado, remetendo, em alguma medida, a perspectiva dos sujeitos entrevistados a uma comunidade de sentido e experiência (LINS; MESQUITA, 2008, p. 29).
Impossível pensar em Boca do Lixo sem levar em consideração o contexto no qual o documentário foi filmado. O Brasil no início do período democrático, após anos sob regime militar. Era Collor. Um país que procurava reconstruir sua imagem. Que imagem seria essa? A de uma democracia? Não é o que parece apontar as falas de alguns catadores: “O que é que vocês ganham com isso? Pra ficar botando esse negócio na nossa cara?”. O diretor responde: “É pra mostrar a vida real de vocês. Para as pessoas verem como que é”. Em seguida, a réplica do mesmo garoto: “Sabe pra quem o senhor podia mostrar? Podia mostrar pro Collor”. Em seguida, outro diz: “O Collor tá matando o pobre de fome”.
A importância da escuta: um cinema de escuta, de conversa. O diretor que cria laços, ainda que momentâneos, com seus personagens. Um diálogo constante que, aos poucos, os aproxima. A partir de então, os catadores se sentem confortáveis o bastante para revelar para a câmera o que ela procura. Importante sublinhar: a voz do outro impera. Neste processo de escuta, ele tem a oportunidade de formar sua auto-mise-en-scène.
A catadora Jurema, por exemplo. No início, mostrou-se desconfortável com a presença da equipe de gravação. Em um segundo momento, abre a porta de sua casa, a intimidade de sua família. Coutinho espera o tempo necessário para que ela se mostre disposta a conversar. A importância da duração. Quando o momento certo chega, ela expõe sua revolta com a imagem estereotipada dos catadores de lixo, sua vergonha de aparecer na televisão e até detalhes íntimos de sua relação com o marido. O diretor a deixa livre para dizer o que pensa. A oportunidade de encontrar alguém que esteja disposto a escutá-la, colocando-se a timidez, o desconforto de lado. Auto-mise-en-scène plena.
Colocar-se à escuta da fala das pessoas, aquelas que nos propomos a filmar, no momento mesmo da filmagem, escutá-las, sugerir-lhes que se coloquem a partir disso, do fato bem simples de que há escuta. A câmera escuta. Que eles atuem, então, a partir de suas próprias palavras, ouvidas por nós, aceitas, acolhidas, captadas. (COMOLLI, 2008, p. 55).
Boca de Lixo nos apresenta uma série de “outros” que não estão ali para ser taxados de inferiores, ser, de alguma forma, vitimizados. Por maiores que sejam as adversidades, encontramos, inclusive, catadores que dizem não ter vergonha de trabalharem ali e que continuariam no vazadouro de Itaoca enquanto ele existisse. Sujeitos dotados de opiniões e vontades. Como apontado por Comolli, “no desejo do outro, haveria o desejo de não ser tomado por pouca coisa (COMOLLI, 2008, p. 89)”.
Referências
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, 2008.
LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo, 2008.

Nenhum comentário:
Postar um comentário