quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Stolat!

Três homens negros conversam à margem de um rio em uma língua ou sotaque indecifráveis, estão em uma cidade movimentada, decidindo alguma coisa. Parecem confortáveis, ainda que conscientes de que façam uma imagem frente à câmera. Aos poucos o idioma inglês aparece e a legenda também.

Em Stolat, o tempo em que essa filmagem se passa não é meu, não reconheço a língua ou aqueles personagens, desconheço por que eles precisam fazer um filme sobre idosos na frança sem falar francês. No entanto, as dificuldades encontradas para achar qualquer personagem ante a desconfiança e antipatia do ambiente em que estão trazem muito rapidamente o espectador para o lado desses primeiros outros que aparecem na tela: Pengau Nengo, Martin Maden e Bike Johnston – os próprios realizadores do filme.

Talvez Stolat conquiste a nossa atenção para a questão do “ser outro” já nessas sequências em que os jovens papuásios simplesmente não conseguem se comunicar por uma barreira linguística e, sobretudo, cultural. Quando finalmente aparece um jovem rapaz que domina o inglês e promete apresentá-los a um avó que pode “se interessar pelo trabalho”, o filme muda de ritmo e de proposta, e, sem muitas explicações mas com muita delicadeza, nos insere no mundo desse novo e principal personagem do filme.

O nome do avô aparece pela primeira e última vez na primeira narração feita pelo jovem neto. Uma locução em off contextualiza um pouco as imagens que vemos : um velho senhor que trabalha sozinho em uma área rural do interior da frança. A locução fala de um idoso polonês com uma história difícil: ex - combatente de guerra, perdeu a esposa há pouco tempo e desde então vive e sobrevive sozinho. As imagens que se seguem, entretanto, se poupam de uma dramaticidade ou esteriotipação que poderiam dirigir a construção daquele personagem. Elas não enquadram as marcas da velhice, da solidão ou das ferrugens físicas ou psicológicas que idade pode gerar. O que vemos é um senhor que sorri, alimenta e trata com carinho seus animais , vai ao mercado, e se sente muito à vontade diante daquela experiência cinematográfica maluca. Após algumas cenas em que os papuásios aparecem à mesa sendo servidos pelo seu personagem, chegamos à cena que em finalmente entendemos o nome do filme: o velho polonês ensina a palavra “Stolat” que caracteriza o brinde com vodka.

Na verdade, “Stolat” gira em torno da pequena cozinha da casa desse senhor e da relação desenvolvida por ele com os que o filmam. Acontecimento fílmico, realidade ficcional ou ficcionalização da realidade,não é possível separar muito claramente o que define o curta. A experiência não é muito explicada, não sabemos exatamente em que condições aquele período de convivência se deu, mas, seus resultados estão sim em sua materialidade fílmica. As barreiras entre quem filma e quem é filmado perdem importância a partir do momento em que ambos criam algo em comum, mesmo sem falar a mesma língua: eles se põem em relação.

O comentário feito em off por um dos papuásios é um testemunho das vias que as filmagens tomaram : “ Não pensamos nele como um idoso com quem trabalhamos, mas como um exemplo do que as pessoas deveriam estar fazendo”. O papuásio comenta sobre a veracidade com que aquele senhor os colocou em sua rotina e como isso modificou o olhar de quem filmava. Naturalmente isso modifica também as possibilidades de olhar dos espectadores.

Pensando um pouco sobre o Estilo Varan (Experiência de Jean Rouge que formou os jovens papuásios como cineastas) é impossível não pensar no papel que o imprevisto tem em Stolat, e na sensibilidade apresentada para lidar com ele. A possibilidade de se expor ao real, construir uma relação com uma alteridade a priori inacessível pela língua, e a partir daí colocá-lo em cena, traz a ética do filme: o resultado não é somente fruto de uma habilidade estética mas de um posicionamento diferenciado diante do outro.

Se a primeira dificuldade dos papuásios em Stolat foi se fazerem entendidos, na casa de seu personagem principal a ausência de compatibilidade línguística se torna a chave para deixar com que aquele senhor também criasse sua auto misce - en - scène . Sorte deles, aí está toda a beleza do filme.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. In: ______. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Azougue Editorial, 2

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