Oito horas diárias de trabalho. Pergunte a qualquer trabalhador se depois dessa jornada há disposição para algo mais - as respostas coincidirão: “É a novela e só!”. Corpo e mente fatigados preferem o entretenimento, afinal, o rigor da labuta lhes tira o ânimo para o confronto com as complexidades da vida. A indignação é latente... ônibus lotados, salários indignos, tarefas extenuantes. Mas que se há de fazer? O mesmo trabalho que alimenta também cala.
Emudecido diante da novela o trabalhador consome padrões, normas e estruturas de poder tão bem colocadas no cotidiano que quase passam despercebidas: o trabalho é uma delas. Embora muitos e importantes autores tenham criticado esses mecanismos de poder instituídos pela lógica de produção capitalista, o senso-comum ainda acredita nos sofismas que dignificam a expropriação do sujeito de sua força produtiva. Não se trata aqui de atribuir juízo de valor ao trabalho enquanto práxis, mas de observar que sua acepção corrente é forjada nos moldes do capitalismo e que assim conforma e orienta a prática do que se entende por trabalho. Mais que ocupação, profissão, habilidade ou talento... o trabalho é Senhor do tempo - é o roteiro que dá identidade ao indivíduo, que nutre seus planos e sonhos, que define o que deve ser conversado e como se deve agir. Comolli é um dos autores que pensa esses roteiros e consegue definir bem sua existência:
“Hoje, passamos das palavras que não contam para as palavras que apenas contam: as palavras dos programas. Assim, esvaziados do jogo de palavras, desvencilhados da vertigem equívoca da linguagem, os roteiros não se contentam mais em organizar o cinema de ficção, os telefilmes, os jogos de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de vôo. Sua ambição ultrapassa o domínio das produções do imaginário para assumirem as linhas de ordens que enquadram aquilo que podemos muito bem definir como “nossas” realidades: da Bolsa de Valores às pesquisas de opinião, passando pela publicidade, a meteorologia e o comércio. (...) Mil modelos regulam, assim, os dispositivos sociais e econômicos que nos mantém em sua dependência.” (COMOLLI, 2008, p. 172)
Pensando dessa forma, há roteiros cuidadosamente elaborados para dizer à massa trabalhadora como ela deve ser. No entanto, persiste em cada corpo cansado uma indignação latente que não se deixa domesticar, ainda que anestesiado pelos espetáculos midiáticos. É esta a centelha que dá chama ao brilhante trabalho do cineasta Jean Rouch. O cineasta propõe que o outro, o filmado, tenha tempo e oportunidade de dizer-se por meio de suas palavras e gestos – que se encarreguem de sua mise-em-scène. À epidemia dos roteiros que ditam os moldes capitalistas do trabalho, Rouch contrapõe, quase como um antítodo, um filme profundamente engajado com a complexidade do indivíduo e de sua relação com o trabalho: Moi, un noir (Eu, um negro).
Moi, un noir (Eu, um negro), filme de 1957, desenvolve-se em torno de três principais personagens: rapazes nigerianos que migram para a cidade de Treichville, Costa do Marfim, em busca de trabalho e sustento. Sob o incentivo e a observação de Jean Rouch, os filmados de Moi, un noir expuseram a realidade de suas vidas cotidianas ao mesmo tempo em que brincavam de atuar em seus próprios papéis. O jovem Oumarou Ganda assumiu-se diante da câmera de Rouch como o famoso ator de cinema norte-americano Edward Robinson; Petit Touré diz ser Eddie Constantine - Lemmy Caution, junção do nome do ator americano Eddie Constantine ao nome de um de seus mais conhecidos personagens, Lemmy Caution; Há ainda o rapaz Alassane Maiga – o Tarzan. Valendo-se do artifício técnico de montagem do som, Jean Rouch associou às imagens mudas o comentário posterior dos atores-personagens – o que deu liberdade criativa para que os filmados fabulassem sobre si mesmos.
Sem roteiro, o filme de Rouch inicia-se a partir da proposta de acompanhar a vida desses migrantes nigerianos em busca de uma ocupação que lhes garanta dinheiro. É a busca por trabalho que une os três jovens. No entanto, a abordagem do cineasta possibilitou que os atores-personagens expusessem, por meio da narração espontânea de suas próprias imagens, encontros e desencontros que evidenciavam quão complexa e rica era sua relação não só com o trabalho, mas com a vida.
Robinson, um dos personagens que mais fala, tece várias críticas a respeito de sua condição de trabalhador temporário, repensa sua mudança a Treichville em busca de melhores oportunidades e se compara com outros indivíduos mais afortunados a quem alguns confortos são acessíveis, por exemplo uma motocicleta ou uma noite com uma prostituta. Ciente de sua condição precária, Robinson não se resume a um pobre rapaz. Ele se assume diante das câmeras de Rouch – não como os padrões capitalistas ocidentais rotulariam um africano negro, pobre e desempregado, mas de acordo com as suas convicções.
“Apesar de tudo, há dias em que temos trabalho. Vamos descarregar sacos de café que vão para a metrópole. (...) Fomos feitos apenas para os sacos. Sacos, sacos, sacos. É isso. É o dever. Não faz mal. Para nós a vida é assim. Os sacos... a vida... os sacos.” (Fala de Robinson)
“Os outros são ricos. Eles voltam para casa de bicicleta, de mobilete, de carro, de motocicleta, de mobilete, enquanto nós... vamos para a “Pensão dos Bozzori”. Não vamos para casa.” (Fala de Robinson)
Nesse sentido, Rouch capta em sua obra o que Comolli chama de fissuras do real – a parte dissoante dos padrões sociais e econômicos é reconhecida pelo documentário. Em fricção com o mundo, aberta às realidades e ao inevitável, a câmera de Moi, un noir assume que o sujeito filmado é soberano sobre si. Os atores-personagens não são tomados por Rouch como espécimes de um tipo social, são homens livres diante da câmera para serem quem são ou quem acreditam ser. Entre o factual e o fabulado está o puro real de Edward Robinson (Oumarou Ganda), Petit Touré (Eddie Constantine - Lemmy Caution) e Alassane Maiga (Tarzan).
As cenas do filme em que os jovens estão em seus momentos de lazer são emblemáticas enquanto fuga dos roteiros sociais totalizantes. Quando estão se divertindo na praia, os jovens filmados se deliciam com a vida a despeito de sua pobreza e do papel que a sociedade quer lhes impor. A beleza do litoral e a alegria daqueles amigos por estarem juntos compõe uma cena sublime capaz de transformar o ínfimo em monumental. O documentário de Rouch deixa ver que, sim, há regozijos em meio à dura vida do trabalhador e que seus prazeres e fantasias escapam aos moldes de produção capitalista – podem ser um dia na praia ou as brincadeiras chulas em meio ao trabalho. Mesmo que em muitas passagens do filme Robinson se queixe das coisas que não pode consumir, ainda assim ele e seus amigos se divertem como a criatividade lhes permite. A pobreza não lhes subjuga, ainda que reconheçam, especialmente Robinson, que lhes falta dinheiro e oportunidades. Aos desejos de consumo ocidentais eles respondem com imaginação – seja fabulando uma luta de boxe entre estrelas do Cinema ou sonhando com novos rumos para si.
Comolli defende que o cinema esbarra em realidades, no plural, e que não pode negligenciá-las, nem dominá-las. A saída está no enfrentamento – o cinema como práxis. É essa a posição de Rouch em Moi, un noir.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
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