Eu, um negro (1958), de Jean Rouch ocupa um lugar entre o documentário e a ficção, uma etnoficção, como denomina o próprio cineasta. Rouch propõe a um grupo de amigos em Abidjan, na Costa do Marfim, que interpretem cada um, livremente, um personagem e se encenem diante da câmera. Oumarou Ganda, por exemplo, o "herói" do filme, decide interpretar Edward G. Robinson, um famoso ator do cinema americano na época. Há aí, nos sujeitos filmados, um desejo de estar (ser) no filme, de fantasiar sobre sua própria fantasia. Não havendo até então a possibilidade do som direto, montado o filme, Rouch o exibe aos atores-personagens, pedindo que recriem, a partir das imagens, suas falas, que as improvisem.
É importante notar que a sobreposição das vozes aos corpos filmados não é um gesto de colagem, mas antes um encontro, mais do que isso, um esbarro, aquilo que não se pode dominar. É no impensado dos corpos e das falas, em sua duração conjunta que Eu, um negro parece melhor acolher aqueles que filma, com todos seus desejos e afetos impregnados na imagem (imagem, mais do que nunca, audiovisual).
A voz que fala já não ocupa lugar daquele que narra, mas também não se cola ao corpo. Fala e corpo parecem antes se friccionar, assim, mesmo que esse encontro seja virtual e possível apenas nas imagens - e não no pró-fílmico - o que ele faz aparecer posto em cena são vestígios de um real que só se dá a ver porque ficção. " Inesperado, imprevisível, o real é o que fende a cena da representação permitindo que o mundo venha perfurar o filme". (Comolli, 2008: 41)
Podemos pensar, então, a fabulação aí, entendendo-a enquanto "fluxo de fala com a memória que renova e inventa um presente sem se ater a um passado imóvel" (Migliorin, 2009: 255), como aquilo que carrega as imagens de potência, ao contrário de um ideal de verdade. A presença da fala, nesse sentido, reverbera na montagem do filme, na presença dos corpos filmados, nos planos montados, eles também que para além das vozes, em conjunto com elas, fabulam a vida. As imagens que o filme nos oferece não pretendem reproduzir a realidade "tal como ela é", nem sequer se aproximar disso. A câmera na mão - "acoplada" ao corpo daquele que filma - torna-se ela também corpo, dotada de uma expressividade que acompanha o inesperado de seus movimentos. Os planos curtos, conjugados com uma montagem rápida, inventam o presente num constante re-inventar, fabulam o presente.
Além disso, é fundamental pensarmos em duas relações: a dos corpos filmados com a câmera (aquele que filma) e a das imagens montadas com os personagens do filme, que o assistem para narrá-lo. Parece se configurar aí uma dupla mise-en-scène.
Aqueles que são filmados se prestam e se oferecem ao olhar do outro, tomado a partir do "olho negro da câmera". Mesmo que o filme se configure enquanto uma ficção que convoca, desde o início, uma performance, há aqui um saber também inconsciente deste olhar, que faz com que uma parte do sujeito filmado requisite uma tomada de postura diante da exposição: "a visibilidade da câmera como um dado imediato da consciência de ser filmado"(Comolli, p. 82). Quando os atores vão para a sala escura, assistir ao filme montado e vão gravar o som comentando as imagens não é uma força ou um saber externo a essas imagens que as atravessam, mas algo que parte de dentro do próprio filme, regido por uma mise-en-scène que nos parece ser espelhada.
Podemos pensar, então, numa auto-mise-en-scène que se dá em cena, que requisita uma postura dos corpos diante da câmera, que retorna meu olhar a mim mesmo posto em cena e haveria, talvez, aqui, uma auto-mise-en-scène que se dá diante das imagens e que requisita uma postura da fala, que, de certa forma, mesmo que, inconscientemente, acaba por perturbá-la. "Quando meu olhar volta para mim, eu me torno objeto. Essa volta do olhar para si mesmo me coloca em cena". (Comolli, p. 83). O sujeito filmado de Eu, um negro, portanto, é colocado em cena duplamente: " há uma dimensão reflexiva no olhar. Olhar. Retorno sobre si mesmo, reflexão, repetição. Revisão. Duplo-olhar." (Comolli, p. 81).
Por Hannah Serrat
Referências:
Moi, un noir (Eu, um negro), Jean Rouch, 1958, 70 min.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MIGLIORIN, Cezar. “A política do documentário”. In: FURTADO, Beatriz. Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, vídeo arte, games... (volume 1). São Paulo: Hedra, 2009. pp. 243-265.
QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Jean Rouch: o sonho mais forte que a morte. In: Devires, Belo Horizonte, v.1, n.2, p-111-146, 2004.
FIESCHI, Jean-André. Derivas da ficção: notas sobre o cinema de Jean Rouch. In: Devires, Belo Horizonte, v.6, n.1, p. 12-29, 2009.
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