“Filmar sem compreender, conseqüentemente, filmar para compreender apesar de tudo, apesar da barreira lingüística.” (COMOLLI, Jean-Louis. 2004. p.158)
Quando três papuásios, estudantes de cinema, decidiram fazer um filme que retratasse idosos na capital francesa e criaram esse roteiro, certamente surgiu uma expectativa de que, ainda que o filme tomasse novas direções, o enquadramento principal do filme seria esse, o que não aconteceu, ou aconteceu.
Nas ruas de Paris, as reações dos nativos a três indivíduos que não falavam a língua e que tinham a expectativa de conseguirem personagens para seu filme, poderia mostrar a principal dificuldade futuramente enfrentada pelos estudantes, porém, com a continuação do filme, a barreira lingüística não foi um diferencial negativo no filme, de alguma forma, foi um fator importante para a própria construção do filme, assim como do relacionamento entre o personagem e os cineastas.
O roteiro de um documentário é, sem dúvidas, diferente de um roteiro de um filme voltado para o espetáculo, ele não é construído por si só, sua construção é coletiva, os participantes do filme, todos eles, são de certa forma, colaboradores, acrescentando e reduzindo. Essa construção do roteiro é vista por Comolli como a força do cinema documentário. “Eu falo, então, de um “roteiro coletivo”, porque as situações, os acontecimentos, as repercussões produzidas na “realidade” (a realidade filmada) são inimagináveis no escritório de um roteirista e só podem acontecer porque elas implicam pessoas reais em estratégias e em experiências reais.” P.162.
A fuga do roteiro é um ponto determinante em Stolat, e em segundo plano a barreira lingüística que não gera grandes dificuldades de relacionamento ou na produção e construção do documentário.
O personagem, o idoso, não vivia em Paris, sua rotina se dava no interior da França, sua origem é polonesa, e como pretendia o filme, ele vive a sua vida, a sua rotina, com seu cachorro, com seus pássaros, sem muita preocupação com o fato de estar sendo filmado, sem dar importância ao registro. Então, aonde se encontra a fuga do roteiro? No personagem integrando os cineastas a sua rotina, tornando eles parte não apenas da produção do documentário, como também personagens secundários. O idoso polonês é um colaborador do roteiro inicial, e os cineastas que planejaram o roteiro são colaboradores desse novo roteiro, agora, por fazerem parte do documentário.
A participação dos cineastas como personagens é parte fundamental do rumo que o filme tomou, além da rotina do idoso, o relacionamento entre cineastas e personagem, que seria dificultado por não falarem a mesma língua, somam a idéia inicial, e o filme deixa de ser apenas a rotina de um idoso e passa a ser também sobre o relacionamento entre pessoas que não se conheciam, não falam a mesma língua, e como esse relacionamento se intensifica e o espectador é capaz de perceber a afinidade entre os personagens.
“O gesto de filmar tornou-se o lugar de um conflito ou de uma tensão que não é mais somente uma questão para os espectadores, mas torna-se cada vez mais uma questão para os realizadores.” P.168
O título do documentário “Stolat” é um expressão/música polonesa que da mesma que equivale a uma música cantada em aniversários, é uma expressão que deseja coisas boas, saúde e longa vida. A cena em que a música é cantada pelo idoso que é seguido pelos papuásios, sem saberem literalmente o que estava sendo cantado, mostra que a linguagem se dá tanto pela fala quanto pelos gestos e isso pode ser percebido pelo próprio espectador.
“No cinema, pela escuta posta em prática na filmagem ou pela escuta do espectador durante a sessão, a palavra filmada torna-se ação: ação falada. Não se trata mais de conversação, mas de intervenção, de gesto, de força em ato.” p.165
“Os filmes documentários não são apenas “abertos para o mundo”: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, concomitantemente, os funda.” (COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. p.170)
Stolat é um documentário em que o espectador pode acompanhar o roteiro que foi programado, a construção coletiva de um novo roteiro, assim como, a adição de novos personagens e de uma nova história, ainda que o enquadramento principal do filme, o relacionamento entre idoso e cineastas ou a rotina do idoso, seja indefinido, ou definido pelo próprio espectador.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
COMOLLI, CAIXETA, MESQUITA. Não pensar o outro, mas pensar que o outro me pensa.
Entrevista. Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004.
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