quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Eu, um negro que representa - 2a versão


Eu, um negro que representa.


O filme Eu, um negro, produzido por Jean Rouch na Costa do Marfim em 1957, nos coloca à ver as imagens gravadas pelo cineasta na cidade de Abidjan retratando a vida de jovens desempregados que vivem de biscates nas ruas da cidade. O desemprego nos centros urbanos africanos, aparece como fruto do êxodo rural desta época em decorrência da colonização imperialista. As imagens percorrem o dia a dia dos jovens por Treichville, a parte pobre da cidade onde moram, e nos interpela de uma maneira intensa na medida em que, aceitando a proposta de Rouch, os atores (não atores na verdade, sem preparação cênica, pessoas “comuns” convidadas por Rouch a integrar o filme sobre suas próprias vidas) se apresentam com codinomes, nomes de atores ou personagens famosos, ora explicando quem realmente são e ora entrando no papel do personagem escolhido.

Tal narrativa nos chega através de um fator técnico que configura toda a forma com que o filme aparece: o áudio, não sendo possível a gravação em som direto, é captado em off posteriormente, com os atores assistindo as imagens gravadas por Rouch e comentando (com participação contextualizante do cineasta no início e em alguns trechos) o desenrolar dos acontecimentos filmados, oscilando entre o discurso documental e o enredamento pela ficção, criando narrativas sobre as aventuras dos personagens que estão “representando”.

O filme, portanto, coloca o espectador na posição de discernimento e conflito entre o documentário e a ficção, que se misturam a cada momento do filme. As imagens (claro, considerando a articulação com o áudio), podem ser colocadas em dois blocos: as imagens “ordinárias”, captadas na rua, no dia a dia dos atores, onde trabalham, comem, descansam, perambulam e as que são produzidas com elementos cinematográficos de montagem, preparação, ensaio, continuing e jogo de câmeras - como, por exemplo, a briga com o italiano em um momento avançado do filme, onde se percebe claramente tais elementos. Blocos estes que se articulam no desenrolar do filme, formando um amálgama de etno-ficção como diz o próprio cineasta, onde a ficção, toda articulada pelos próprios atores sobre as suas vidas, passa a documentar também uma articulação e construção subjetiva em cima da dura realidade de suas vidas. Ao mesmo tempo em que Oumarou Ganda reclama da falta de emprego e da pobreza que enfrentam em Abdijan, se coloca com o codinome “Edward G. Robinson” (ator famoso no início do século XX) onde representa quem gostaria de ser.

Da tensão colocada por Rouch, então, emana um produto que, assim como o gesto de Vincent Carelli no projeto Video nas Aldeias, coloca à disposição do sujeito filmado a possibilidade de produzir sua representação. Misto de intenção antropológica e de militância contra a distorção que uma montagem executada com objetivo ficcional pode colocar na imagem que se tem de um povo – aqui, principalmente na figura do Negro africano, em geral marginalizado na comunicação em poder do colonizador –, o filme acontece através de um gesto que confere a chance de escapar à imagem produzida de forma recortada e montada ideologicamente, onde o outro dura em frente à câmera, se mostra à vontade no espaço e no tempo do filme.

A vida organizada dentro de um universo simbólico capitalista, convivendo com os citados meios, frui a todo tempo da informação segmentada, efêmera e feita de imagens com natureza inversa às de duração. Ao contrário destas, alicerçadas por maior quantidade de pontos de apoio ligados com coesão à realidade fora da tela, elas geram uma percepção distorcida e tensionada das relações entre espaço e tempo, possível e impossível. Por outro lado, o registro documental, com devido respeito à duração das imagens, nos dá a abertura necessária para o que Comolli chamou de “o risco do real”, que passa a nortear o caminho traçado pelas imagens, guiadas pela possibilidade do acaso, pela imanência dos acontecimentos que caminham nas trilhas incertas do espaço-tempo verdadeiro, constituído no acaso.

As imagens chamadas documentais então, se colocam em lugar de oposição às de ficção que por sua vez convivem mais próximas do indivíduo na vida moderna cotidiana, imersa nos meios de comunicação. Trazendo pedaços da realidade capturados coesamente e dando espaço para a ambiguidade, elas desarticulam a intervenção irreal das imagens sem duração e se mostram tão diferentes delas que então podem ser tidas por ficção.

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“Guerra à informação. Documentário: o contrário da informação, das informações; o reino da ambigüidade; o território das metamorfoses; o domínio da narrativa. É preciso recomeçar daí. É por aí que o documentário tem muito a ver com a ficção. No mais positivo dos sentidos. Ficção como força que nos faz sair dos eixos. Ficção como porta que nos faz passar para o outro lado do espelho narcísico no qual os meios de comunicação nos aprisionam.” (COMOLLI, 2008: 127)


Aqui, porém, não bastando a intenção, temos que nos recordar que Rouch é francês, visivelmente um “gringo”, circulando por Abdijan com uma câmera no meio dos africanos (instrumento mais incomum ainda naquela época). A própria possibilidade de aparecer no filme desse gringo, traz para os jovens retratados a tentação de expor sua subjetividade em leituras inventadas sobre suas vidas. Por outro lado, a colocação de pessoas na frente das câmeras articula outras representações e significados, expondo o fator de realidade de quem são estes jovens, o que esperam da vida e como gostariam de ser vistos ou mesmo de viver. Ao aparecer no filme, eles se tornam inevitavelmente múltiplos personagens, tanto os criados por Rouch e por eles mesmos nas narrações quanto as figuras reais que são e representam, africanos que vivem em Abdijan, passam dificuldades e estão sendo retratados em um filme de um francês sobre os africanos.


“É difícil para o documentário filmar seres humanos sem cair na tentação e rapidamente transformá-los em personagens de filme. (COMOLLI, 2008: 130).


Na faixa de áudio, podemos sentir uma extrema descontração, no momento em que assistem as imagens e passam a construir o corpo narrativo do filme juntos, brincando também com a situação. O fator da duração aparece no áudio, muito mais que na câmera e através disso podemos sentir a subjetividade de cada um aflorando na concessão de voz que lhes é dada. Portanto, nesta descontração é que aflora o real sentido documental do filme, quando em um ambiente descontraído e olhando para imagens de si próprio, eles dão passos para fora do espetáculo criado e falam livremente, como o fariam em seu papo cotidiano sobre os problemas que vivem e as aspirações de vida, como seres humanos comuns que são. Podemos perceber acontecendo neste momento, a documentação de uma ficção, gerada em contraste ao objeto documental gravado pela câmera. Documental no sentido em que escapa à imagem tradicionalmente feita ficção ideológica, historicamente prejudicial aos negros africanos.

Por Daniel Ferreira

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