quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Stolat! Stolat! (SEGUNDA VERSÃO)

O inesperado, o incontrolável, a surpresa. O documentário, segundo Comolli (2008), trabalha, ou deveria trabalhar, com tais substantivos. Frente à constante roteirização da vida, promovida por gêneros já consagrados que povoam a programação diária das televisões de diferentes países, o cinema e, mais especificamente o documentário, seria o suspiro daquilo que ainda permanece inenarrável, ou que pelo menos escapa ao ímpeto controlador das coisas do mundo. Ou seja, a prática documentária se relaciona com aquilo que escapa, que transborda os limites dos padrões e roteiros, apresenta lacunas ou novos contornos. "O não-controle do documentário surge como a condição de invenção. Dela irradia a potência real deste mundo" (COMOLLI, 2008, p. 177), afirma o autor. Ao mesmo tempo fascinante, a ausência do controle também sugere aventura e desbravamento. Quem é aquele filmado? Como ele se colocará em cena? Qual o produto da relação com aquele que o filma e a câmera entre ambos? Questionamentos que, se causam apreensão, também instigam e fascinam.


Já que a dificuldade em apreender o real é uma das principais características do documentário, porque não deixá-la transparecer? Podemos dizer que o filme produzido pelos três jovens aprendizes da arte de filmar em Stolat (Pengau Nengo, Martin Maden e Bike Johnston, 1985) é basicamente sobre isso: um filme sobre a dificuldade de filmar. A partir do tema "idosos", os jovens, negros, naturais de Papua-Nova Guiné, saem pelas ruas de Paris buscando pessoas com as quais pudessem desenvolver a idéia inicial. Está dada a primeira dificuldade, a língua. Falando inglês e entendendo pouquíssimo francês, tornou-se complicado para os realizadores encontrar alguém disposto a encarar esta empreitada sem "boa comunicação". Não se sabe o porquê da escolha da velhice como tema, afinal o que mais se via era hostilidade ou desconfiança por parte dos velhinhos abordados, salvo um ou outro mais solícito, mas que não se dispuseram, mais uma vez devido ao inglês.


Tema para eles difícil, sim, mas se não tivessem enfrentado os percalços, não teriam conhecido um personagem tão especial como aquele que ocuparia os próximos planos do filme a partir de então. Potência no abrir-se para o erro, impossibilidade do roteiro, nas palavras de Comolli, é o que se vê na tela. De uma conversa banal com um homem branco sobre a localização de um metrô surgiu a possibilidade inesperada de conhecer seu avô, um senhor polonês habitante do interior da França. Sua história de vida nos é apresentada por meio da voz over de seu neto. Assistindo àquele velhinho capinando a horta, alimentando os animais, entretendo-se com o cachorro ou passarinhos, somos colocados em contraponto com suas experiências de guerras, prisões, mudanças e países. Uma vida tão pacata encobre um passado turbulento. Mas o filme não parece querer nos fazer ter piedade, dó ou vangloriar aquela pessoa que protagoniza os quadros. As falas "introdutórias" do neto, antes, reforçam ainda mais os sentimentos com relação ao avô proporcionados pelas imagens: simpatia, ternura.


A relação de aproximação entre os três diretores e o senhor deixou a questão da língua com status de “apesar”. A tomada de consciência dessa relação é dada a ver quando, dessa vez, é a voz de um dos três em off que “ambienta” a cena. A narração nos oferece suas impressões sobre o sujeito filmado, sobre a dificuldade em abordá-lo e o prazer em apreendê-lo. Apreensão esta não sem percalços, afinal passou da tentativa de uma leitura labial para uma leitura corporal, transformando-se, enfim, em cumplicidade e entrega. Enquanto ouvimos, vemos o senhor cozinhando, ele corta as batatas com calma, procura suas panelas e vasilhas, saboreia temperos, olha pra câmera, sorri e a seqüência termina com um "excelente!" após provar a receita.


Deixar que o outro dite a duração, que ele mesmo se dirija enquanto personagem do filme. Possibilitar que a mise-en-scène seja, em igual media, auto-mise-en-scène. Esses são exercícios, conforme Comolli, que o documentarista precisa trabalhar na abordagem da alteridade, um exercício de escuta, sobretudo. Escuta que, como demonstrado pelos estrangeiros aventureiros, transborda os limites da linguagem verbal. O simples senhor de 85 anos, ao estabelecer uma relação despreocupada com a câmera, cresce tanto no quadro que a sua gentileza, alegria e sabedoria podem ser traduzidas em qualquer língua, seja inglês, francês ou até polonês. Stolat, palavra de origem polonesa que dá nome ao filme e significa algo como saudação à longa vida, expressa mais que um desejo dos rapazes com relação ao senhor, sendo que é ele quem nos saúda, empunhando seu copo de vodca. Estamos, os diretores e nós, espectadores, sob seu feitiço.


Interessante, ou até controverso, como um documentário produzido por três papuas sobre um migrante polonês tenha recebido um prêmio de melhor documentário etnográfico sobre a França (Jean Rouch Film Festival, Paris, 1986). Foi a partir da impossibilidade de encontrar alguém em Paris disposto a filmar, o filme foi buscar no estrangeiro, no outro, algo que fosse capaz de falar um pouco sobre os franceses.


Referência Bibliográfica
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

por Bárbara França

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