quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Desenha-me um carneiro? - v2

Débora em seu Salão fazendo as unhas de uma cliente enquanto conversa com uma criança sem entendê-la muito bem, fala como quem quer dizer algo de doce. Fábio trabalha todos os dias em vários empregos, no restaurante em que trabalha como garçon para por um momento de descanso e observa o horizonte, parece ter o desejo de um futuro melhor. Cauan perambula pela casa, sem falar, pois suas conversas com os familiares o eludem de qualquer fala de iniciativa própria. E Pirambu que pouco conversa, remexe papéis sentado em uma cadeira perto da janela de sua casa, a paisagem e um vaso de flores sobre a mesa aliviam a cena.

Diante de vidas tão comuns, Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, parece querer nos mostrar algum segredo. É que a imagem que nos é mostrada parece escapar a qualquer moldura a que possamos tentar enquadrar. O sentido não pega. Os quatro personagens também não se enquadram, eles parecem resistir a qualquer apresentação final e o filme não cessa de nos apresentá-los.

Ao ver Cauan brincar com um balão debaixo de uma mesa ou observar Débora depilando a barba de um cliente parece que já sabemos que essas imagens não querer nos dizer nada. É somente por um arrombamento de sentido que podemos fazê-las nos dizer, pois a relação da câmera com os personagens, apesar de transparente, tem opacidade no entrelaçar das vidas que nos são mostradas: são vários fragmentos de mundo que nos aparecem. Brasília Formosa não se trata de um naturalismo que pretende mostrar a vida como ela é em sua totalidade. O que vemos são partes do cotidiano juntas, mas também desligadas, que por acaso ou pelo partilhamento do lugar em que se passam as cenas, o bairro Brasília Teimosa, conectam-se — é possível lembrar do encontro de Débora, candidata a uma vaga do Big Brother, com Fábio que o contrata para fazer seu vídeo-inscrição.

Ainda que fragmentado, a impressão que saímos do filme é de uma vista panorâmica dessas vidas que nos convida a nos investir de uma outra maneira. Ver Brasília Formosa não é só ser conduzido pelo filme, mas buscar nos intervalos, nas elipses que não são dados a ver, espaços que nos caibam. Essas imagens parecem impor esse lugar que Sontag defende para o espectador — "Contra a Interpretação" (1987:11) é um projeto que se recusa a buscar um conteúdo na arte. Por uma tradição que vê a arte como uma imitação da realidade, é aquilo que se encontra por detrás da forma, que está por trás daquilo a que representa, que se pode chamar de arte — a forma seria só um acessório para o conteúdo. Esse processo consciente de interpretação, para Sontag, constitui um ato de esvaziamento do mundo, que despotencializa a arte por dar valor somente a um conceito que toda forma guarda. Interpretar é arrombar o sentido das obras por insatisfação, como se quisesse substitui-las por outra coisa. E por conseqüência, esse ato só serviria para transformar "o mundo nesse mundo" (1987:16). Como se existisse algum outro.

Para escapar a esse impulso exasperado de interpretar, as imagens devem parecer tão unificadas e limpas, e sua intenção tão transparente, que elas são exatamente o que são. E em Avenida Brasília Formosa é a convivência com essas vidas, com esses corpos, que faz haver filme (COMOLLI, 2008:169). Os planos duram e ao final de cada um deles é a própria duração que lhes dá valor. No filme, um plano mais outro, quase não se somam, a fragmentação das histórias não deixa quase nada para se juntar. O filme se constrói em meio a essa desconstrução.

E na cena, os personagens, como na perspectiva de César Guimarães (2010:188), não se destacam por nada de especial que os delimita, pois o ordinário aqui "não o é por contraste com algum extraordinário; não é o momento nulo que esperaria o 'momento maravilhoso' para que este lhe dê um sentido ou o suprima ou o suspenda" (BLANCHOT apud GUIMARÃES, 2010:182). Os personagens apresentados, por mais faces que tentemos delimitá-los, eles não comportam descrições adjetivas, mas somente descrições que são também um movimento, suas relações com objetos e pessoas em seu cotidiano.

E é por esses dois movimentos (a duração e a cena) que o filme parece ganhar corpo: a própria duração que engendra o dispêndio, um gasto por nada. Gasto em que o espectador se empenha por desejo, primeiro, talvez, por essas imagens desenquadradas constituírem paisagens completamente habitáveis, que em nada parecem excluir o espectador da cena. Pois ele mesmo deve tomar parte na cena, nesse mecanismo tão potente do cinema, a projeção.

Nesse ritual ao qual sempre retornamos, por uma insistência das partes — espectador e filme — pode acontecer a insistência que um Pequeno Príncipe aprende com uma Raposa. E ele, o principezinho, como que portador de parte de um segredo, insiste, apesar dos desentendimentos da linguagem, a pedir a um desconhecido em um gesto banal e ao mesmo tempo isento de sentido: "Desenha-me um carneiro?".

REFERÊNCIAS 
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. In: ______. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Azougue Editorial, 2010.
DE SAINT-EXUPERY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1996.

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