“O acontecimento do documentário para mim é o encontro entre os dois lados: entre eu e o outro, entre o outro e eu. Isso é essencial.”
Eduardo Coutinho.
Entrevista à Sinopse – Revista de cinema, n.3.
Boca de lixo (1992), de Eduardo Coutinho, é um documentário em que a provocação pode ser considerada uma palavra chave em alguns momentos. O filme mostra o cotidiano dos catadores de lixo no lixão de São Gonçalo, Niterói, Rio de Janeiro. Nas primeiras imagens o ambiente é apresentado sem as pessoas, e a sensação de mal estar já fica latente no espectador. Na sequência seguinte, os catadores surgem na tela falando alto e revirando o lixo recém chegado de um caminhão. Nas próximas, a equipe do documentário que chega com a câmera ligada no lixão encontra nas reações das pessoas que fogem e fazem gestos para que eles fossem embora, questionamentos e desconfiança.
Logo nos minutos iniciais já é possível notar as várias instâncias da provocação: do espectador que se defronta com imagens repugnantes e rememora pelo senso comum a sensação de pena com quem ali trabalha; dos catadores que fogem ou tapam o rosto, intimidados pela câmera. E do próprio documentarista que é recebido de forma pouco amistosa, com perguntas nitidamente provocativas. E também ouve muitas vezes respostas defensivas, como se soubessem tipificados, talvez por saberem a forma em que “o indivíduo em seu esplendor e miséria, torna-se, por meio da publicidade e da erotização crescente das mensagens midiáticas, o grande negócio do espetáculo.” (COMOLLI, 2007: 129)
Os xerox que são mostrados para que eles se reconheçam já denotam que o que o filme vai mostrar é uma imagem deles mesmo. Passado esse primeiro momento em que se dá o approach, as pessoas ganham nomes e são singularizadas: tornam-se personagens Nirinha, Lúcia, Cícera, Enock e Jurema. Em suas casas elas ganham a chance de se mostrarem. A fronteira entre o que é encenação e o que é a vida deles mesmo fica muito pouco delimitada.
Coutinho, permanentemente uma voz fora do quadro, por meio da entrevista faz perguntas que provocam/incitam as pessoas a falarem, e , quando o processo de fala dos personagens se inicia, a câmera escuta. “Todas as condições estão dadas. Elas se encarregam da mise-en-scène, a tornam pesada ou leve, a realizam com suas insistências, com suas maneiras de dar sinais” (COMOLLI, 2008: 56). Como no momento em que a filha de Cícera começa a cantar, encarnando a personagem da cantora sertaneja – um sonho para ela –, e faz uso dos trejeitos dos cantores mesmo, balançando o corpo e fechando os olhos, por exemplo.
O fato de escutar propicia um verdadeiro descortinamento dos sujeitos. Alguns trabalhadores tentam fugir do estereótipo da mídia. Jurema, por exemplo, explica o motivo pelo qual, no primeiro encontro, ela mentiu falando que os catadores não comem coisas encontradas no lixão (mentira flagrada em alguns clipes anteriores que aparecem na montagem). Ela não queria que a representação dos catadores famélicos que engolem rápido o que encontram para comer fosse passada, imagem que reduziria muito o que eles são de verdade. Quando percebem que são ouvidos, se sentem à vontade para falar até de assuntos pessoais, como no caso de Jurema que conta com uma naturalidade impactante como conheceu o seu marido, descrevendo até sua primeira relação sexual com ele: “foi rápido, foi bom, foi ótimo”.
O processo de realização do filme é mostrado, a câmera e a equipe até aparecem em cena, bem como a hesitação na construção das falas dos personagens. Coutinho adota uma postura ética que não faz pré-julgamentos e aceita de forma não resignada o mundo que se apresenta a ele. A realidade não sofre mascaramento, nem manipulação, a miséria brasileira na sua forma chocante ou não é apresentada ao espectador no documentário.
Por João Paulo Rabelo.
Referências:
Boca de lixo, Eduardo Coutinho, 1992, 50 min.
COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: O comum e a experiência da linguagem. GUIMARÃES, C.; OTTE G; SELDLMAYER, S (orgs). Belo Horizonte, UFMG, 2007.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
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