O Santo Forte de Eduardo Coutinho além do aspecto religioso
Santo Forte não é apenas um filme sobre religiosidade, embora essa seja a temática que norteia toda a narrativa do documentário de 1999. Sem pretensões de empreender uma análise sobre o perfil religioso do brasileiro – isso seria usar o cinema para defender uma tese, algo que o cineasta Eduardo Coutinho abomina – Santo Forte é, antes de tudo, um filme a respeito da subjetividade.
Ao longo dos séculos, a religião tem funcionado como um instrumento de unificação para as sociedades. No mundo fragmentado da Idade Média, a Igreja Católica representava o principal elo entre a população, sendo responsável por congregar os diversos reinos da Europa Ocidental sob a bandeira única do catolicismo. Ainda hoje países declaram a sua religião oficial, demonstrando que a construção da sua identidade enquanto povo e nação perpassa o domínio da crença. A espiritualidade, por outro lado, é uma das características mais íntimas de um indivíduo. Experimentada de uma maneira visceral e por vezes arrebatadora, dificilmente transposta em palavras, quase nunca apreensível a outrem.
Em Santo Forte, Vera Dutra declara: “só quem um dia viveu uma intimidade com Deus, com Cristo, pode sentir exatamente a medida do que eu estou falando”. Apesar de se referir a um momento específico da vivência da personagem, a frase denota a própria natureza, inefável e particular, de cada uma das experiências relatadas durante as entrevistas. O ato de crer dá-se num espaço privativo e único, exclusivamente dentro do sujeito, inacessível para alguém que não ele mesmo. Até fazer com que os personagens empreendam o esforço da fala é uma tarefa que invade essa esfera privada, de forma quase agressiva, causando certo receio aos entrevistados.
Portanto é necessário, como Coutinho vem nos dizer, que se fomente, ali, uma atmosfera de cumplicidade. Segundo ele, o dinheiro não é capaz de resolver essa questão – e isso nos remete, inevitavelmente, às cenas de Santo Forte em que uma das integrantes da produção do documentário efetua a entrega do cachê aos entrevistados. Não basta pagar para que o sujeito se exponha, pois em revelar-se reside um risco que raramente o indivíduo está disposto a correr, mesmo em vista de uma compensação monetária.
É preciso criar um ambiente confortável para o personagem, em que ele se sinta à vontade para desenvolver o seu papel. Para Coutinho, esse patamar começa a ser construído desde o momento da pesquisa anterior ao filme, onde o pesquisador precisa mostrar educação e respeito com o outro. Somente nesses termos é que se pode alcançá-lo. Em seguida, é importante que todo o aparato de filmagem e a equipe ao seu redor não intimidem ou inibam o sujeito. É possível observar que alguns dos entrevistados de Santo Forte estão, a princípio, bastante incomodados. Mas, atento a esse detalhe, Coutinho estabelece a entrevista em um modelo de conversa, com um tom bastante informal, reduzindo a distância entre entrevistado e entrevistador. Isso diminui também a noção de autoridade envolvida nessa relação, o que possibilita maior liberdade aos personagens. Então, conforme essa conversa transcorre, os indivíduos vão se abrindo, dispostos a revelar a si mesmos perante as lentas da filmagem.
De acordo com o que o cineasta afirmou, o que ele pretende é “fazer um filme em que as pessoas construam seus personagens, porque na vida real nós construímos nossos personagens – no trabalho ou em casa, em qualquer lugar.” Aqui se instaura uma cena, ainda que ela não esteja presa a um roteiro. Coutinho admite que existe algo de invenção na postura dos entrevistados diante das câmeras, porém, ressalta que essa construção não difere daquele que cada um de nós realiza no seu dia-a-dia. Isso não interfere na veracidade da narrativa, ou – melhor dizendo – na honestidade do depoimento.
Em seu texto A política do documentário, Cezar Migliorin cita o conceito de fabulação de Deleuze, definido como um “fluxo de fala com a memória que renova e inventa um presente sem se ater a um passado imóvel (...). Inventar a si com uma memória que aparece como matéria-prima e não como um arquivo factual e mensurável.” As entrevistas concedidas em Santo Forte desenvolvem-se nessa espécie de campo. Sob o pretexto de falar a respeito da sua religião, o personagem narra a sua vida inteira, a sua história, passando por seus conflitos e inseguranças, suas realizações, – enfim, a sua intimidade.
Acontece que o espectador não tem acesso a essa intimidade, pelo contrário: o lugar do espectador é externo, e não há a pretensão de torná-lo um reduto de onisciência ou conhecimento privilegiado a respeito dos fatos. Os depoimentos não provam, e acima de tudo não o querem, a hegemonia de determinada religião ou de outra, nem mesmo a veracidade dos fatos contados. A questão central do Santo Forte não é promover a crença, nem em Deus, nem no Espiritismo, nem no Cristianismo, e nem provar que manifestações e eventos espirituais são reais – ou, sequer, possíveis. O que realmente importa no filme de Coutinho é a capacidade que ele traz de apreender a natureza mais rudimentar e pessoal do outro, através das experiências relatadas pelos entrevistados.
Nas constantes tomadas em que mostra os ambientes vazios, o cineasta retrata cada um desses espaços como um lugar fantástico; mas não por afirmar que ali ocorreu uma manifestação espiritual, e sim porque existe um indivíduo que crê que um evento dessa natureza se passou naquele ambiente. Novamente, entra em jogo a questão da subjetividade: a crença particular, íntima. Da mesma forma, o documentário utiliza imagens de cunho religioso (a bíblia cristã, as estátuas dos orixás da Umbanda) não como alegoria ou meramente um acessório visual, mas para reforçar a construção da narrativa empreendida pelo sujeito. Menos importante do que aquilo em que o sujeito acredita – seja o Espiritismo Umbandista ou o Protestantismo – é a forma como ele se relaciona com essa crença. O filme de Coutinho discorre sobre a maneira como os indivíduos enxergam a si mesmos, além, e não somente através, do aspecto religioso.
Ao longo do documentário, o Santo Forte consegue envolver cada um dos seus personagens em uma atmosfera peculiar de mistério. O assunto em questão, a crença religiosa, conduz o público rumo a um estado de perplexidade. Não só aparece como um aspecto desconhecido e inexplicável; ele intriga, desperta a curiosidade em relação a esse outro, ao sujeito que se mostra na tela.
Por último, é importante ressaltar que tais personagens mostram-se sem, de fato, desvendarem-se. Pelo menos não por completo. Afinal, mesmo que o sujeito aceite se revelar através de um testemunho, – o que compreende um exercício de exposição da subjetividade – a essência do que o seu depoimento trás permanece oculta. Ao espectador não é permitido desfrutar da intimidade da crença, nem partilhar a experiência do personagem, pois tudo isso ainda é mantido além dos domínios do seu conhecimento.
Referências:
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MIGLIORIN, Cezar. “A política do documentário”. In: FURTADO, Beatriz. Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, vídeo arte, games... (volume 1). São Paulo: Hedra, 2009.
SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas, 2009.
Entrevista: Eduardo Coutinho. Revista e, nº 109. Junho, 2006. Disponível em:http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=250&Artigo_ID=3883&IDCategoria=4282&reftype=2
Deixando um link válido - bitshare.com/files/l22twr9k/SantoForte.avi.html
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