quarta-feira, 30 de novembro de 2011

2o ensaio - Corumbiara

· Documentário, imagem que dura

O gesto de passar a câmera – para o que antes era mero alvo filmado - aparece então para mim, no decorrer desta disciplina como indicativo de um marco histórico para o homem contemporâneo em relação à alteridade e a sua relação com a imagem. Usando também este recurso, Corumbiara nos expoe à gestos de diferentes naturezas dentro da linguagem audiovisual, os quais se interpelam, se entrelaçam e dão uma enorme potência política, estética e esteticamente política ao produto final. O dispositivo cinematográfico consegue amalgamar esta multiplicidade.

Duração do documentário dentro da “realidade”

Lembramos então que o filme contém imagens capturadas em uma fatia de tempo de 20 anos. Os diálogos de Vincent com seu amigo indianista Marcelo Santos na sala do que pareceu ser sua casa, articulam a história que viveram durante estes 20 anos com os acontecimentos envolventes ao povo da região, os índios recém descobertos, a mídia nacional (rede Globo principalmente) e a população brasileira. Durante todo o filme, sentimos uma bela articulação de contrastes visuais com a mudança das imagens, mas os contrastes que mobilizam o espectador são devido à mudança desses registros, ora jornalismo ficcional, ora depoimento sincero, ora imagem-documento, etc. A mudança no registro, com diferente natureza, endereçamento, abrangência, aspecto causam choques, deslocamentos no espectador que sai de um universo e entra em outro, abrangendo o assunto em diversas maneiras que se manifestou.

Portanto, a montagem final do filme consegue enlaçar de maneira bem abrangente o mundo filmado. A história relatada e o processo como um todo, são ainda mais credibilizado pelo fato de usar a duração nas imagens individualmente, as quais se apóiam em vários minutos coesos de realidade capturada pela câmera. Mas algoo que cola fortemente o produto de mídia ao mundo, no espaço tempo em que ele convive, é o fato de o documentário durar no decorrer dos acontecimentos.

Os vinte anos, apesar de serem expostos em menos de duas horas, recortados para receberem um sentido lógico de compilamento (sempre ideológico, é claro), trazem uma duração da vida sobre as coisas; são relações duradouras, sofrimentos duradouros, conquistas morosas, anos de desmatamento, anos de resistência, idas e voltas separadas por longos tempos em que a vida foi vivida e reconfigurada constantemente. A duração do produto como um todo se solidifica pelo acúmulo e aí expõe sua potência.

Por fim, Corumbiara também é um instrumento de luta política de Vincent. Conhecendo a trajetória do diretor podemos ver que ele, através do projeto Video nas Aldeias procura um gesto ético na forma de documentar, representar a vida e a existência dos indígenas brasileiros, dando a chance aos próprios indígenas de retratarem seu mundo conforme a visão de mundo de sua cultura. No filme, ao invés de passar câmera aos indígenas, ele segura a câmera e mira para sua própria cultura. Como homem banco que é, percorre com ela acontecimentos inerentes à cultura do branco, ocidental, colonizador e capitalista, muito delicados e devastadores no que tange o “desenvolvimento” industrial, tecnológico, social e a forma com que este bicho hegemônico lida com a alteridade.


Daniel

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Segundo ensaio - O prisioneiro da grade de ferro

O prisioneiro da grade de ferro também leva o nome de “auto-retratos”. E são realmente os presos quem desenham suas feições dentro da história. Poucos optam por mencionar os crimes que cometeram, por exemplo. Em frente às câmeras, preferem mostrar a arte que sabem fazer, com caneta bic, pipas, bolas ou na habilidade de produzir cachaça.

O que mais me chamou a atenção no documentário foram as cenas inicial e final. No começo, os homens aparecem apenas com uma placa ao pescoço, com número do prontuário e do pavilhão que residiam. Nenhum nome, nada que de fato os distinga uns dos outros, enquanto seres humanos. Ao fim, no entanto... após terem a oportunidade de se expressarem, manifestarem suas identidades, opiniões, medos, fraquezas, defesas, sonhos... de mostrarem facões e o tráfico de drogas; o rap e o futebol; o culto protestante e o culto ao diabo; a solidão e o sentimento de revolta... as imagens voltam ao fim, tendo sido cortadas as placas, e os homens ganham seus nomes de volta.

O filme se presta a conceder essas identidades de volta. Dar rosto e voz – plurais – ao amontoado de seres humanos que habitava o Carandiru. Com fatores em comum, sim: cometeram crimes e sofriam com o descaso do Estado. Mas com peculiaridades também, vistas por ninguém. Para as autoridades, o presídio não era nada mais que uma dor de cabeça. E que diferença os presos fariam? Se estavam amontoados em cubículos onde não havia espaço nem para que todos se deitassem ao mesmo tempo; se eram deteriorados pelos condições que lhes eram impostas.

Curiosas são algumas das cenas que os presos decidem gravar. Em alguns momentos, o destaque vai para as mazelas, para as falhas na saúde, na alimentação. Mas em outros, o detento, com uma câmera na mão, opta por filmar um gatinho preto que dorme. Ou as luzes da cidade. Ou as curvas das mulheres nos pôsteres. Ou as grades das janelas, que os retêm ali dentro.

A câmera nas mãos deles dá a oportunidade de mostrarem o que até ali era silêncio. A maioria dos detentos conhece artigos, penas, leis, argumentos. Alguns querem se reintegrar à sociedade. Alguns já cumpriram suas penas, como a lei manda, e continuam encarcerados. Eles têm sonhos, saudades, sentem solidão, e por quê não? Arrependimento. Eles têm nome. E graças a Paulo Sacramento, hoje o sabemos.



por Camila Braga

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Instruções para trabalho final


1. O texto deve ser inédito, de caráter ensaístico, sobre o filme SANTIAGO, de João Moreira Salles.

2. O documento deve ter entre 10.000 e 13.000 caracteres (4 a 5 páginas na formatação padrão do Word), incluindo referências bibliográficas e notas.

3. O documento deve ser formatado com a seguinte padronização: fonte Times New Roman ou Arial, corpo 12, espaçamento de 1,5 cm e título em caixa alta e baixa.

4. Os trabalhos devem trazer as seguintes informações, nesta ordem: título, autor, corpo do texto, bibliografia.

5. As notas devem vir no rodapé de cada página, caso não sejam simples referências bibliográficas.

6. As referências bibliográficas das citações devem aparecer no corpo do texto. Ex. (COMOLLI, 2008: 66)

7. Quanto às referências de filmes no corpo do texto, é necessário apresentar título do filme (em itálico), diretor e ano. Ex: Santiago (João Moreira Salles, 2006)

8. Os trabalhos devem ser enviadas em versão eletrônica, arquivo salvo como .doc, .docx ou .rtf (não enviar em pdf para possibilitar correções) para o e-mail kkmaia@gmail.com.

9. O nome do arquivo deve conter o nome do autor do texto.

10. A avaliação irá observar a qualidade textual, o conteúdo analítico e a pontualidade na entrega. O prazo final é 05 de dezembro de 2011.

EM CARTAZ: forumdoc.bh.2011!

forumdoc já começou e amanhã, quinta-feira, 24/11, como combinado, faremos nossa última aula no Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes. Às 19h, veremos PRIMATE, de Frederick Wiseman e às 21h, IL QUE SE REPOSENT EN REVOLTE, filme da competitiva internacional. Para quem quiser conferir, a programação completa está no site: www.forumdoc.org.br

Aguardo todos lá!

A primeira misce-èn-scene

Tamira Marinho

Corumbiara, filme que começou a ser realizado para tentar provar o extermínio de índios em uma gleba de Rondônia, é exemplar quanto à delicadeza das espécies de contatos que apresenta.
O contato que mais me impressiona, e emociona , é o ocasionado pelo momento em que a equipe do indigenista Marcelo Santos, acompanhada pelo “fotógrafo documentarista indigenista” Vincent Carelli, encontra na mata pela primeira vez os dois índios isolados Canoê. O impasse da equipe de se aproximar ou não – por um risco que ambos os lados deviam supor daquele encontro - chega a ser poética por conseguir condensar em imagens tantas questões relacionadas à alteridade. Alí se materializa a questão de que a alteridade é da qualidade do inigualável, e muito mais do que aquilo “que não sou eu”, é da ordem do mistério, do imprevisível e inapreensível. Nessa cena percebe-se a distancia instransponível entre um eu e o outro, e emociona, não somente pela raridade da cena que foi filmada, mas pelo seu desfecho: aquelas figuras icônicas do que poderia caracterizar “outrens” decidem conhecer-se, num pacto de confiança e curiosidade.
Essa situação leva a pensar em como se deu a partir daí o que eu chamaria de segundo tipo de contato, o da câmera com os sujeitos filmados. Esse tipo de contato, além de um encontro, é o que determina a produção de uma imagem. Imagem, a qual carrega desde o princípio um ponto de vista, o olhar daquele que filma; ainda que este queira dar espaço para os filmados, fazer deles sujeitos e não somente objetos da filmagem. Filmes como o Corumbiara produziram imagens na inocência dos filmados, de índios isolados, os quais não fazem parte do imaginário comum do saber da câmera, estão fora da preocupação com a imagem e tentativa de adequação da mesma, não têm consciência do que é aquele olhar da câmera para eles. Corumbiara tem aí também seu mérito por ser um registro dessa auto misce-en-scène que, a meu ver, supera em despreparo dos filmados àquelas feitas pelas primeiras imagens em película pelos irmãos Lumiére.
Outro aspecto relevante de Corumbiara é o fato de a obra consiga carregar claramente um ponto de vista desde seu início, mas permanecendo-se aberta ao que o real poderia oferecer .
Ainda que Carelli não tivesse estudado cinema, o filme, pelo seu modo de realização, encaixa-se bem no que Jean-Louis Comolli diz em Sob o risco do real:
o documentário não tem outra escolha a não ser se realizar sob o risco do real. O imperativo do ‘como filmar’, central no trabalho do cineasta, coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme. A prática do cinema documentário não depende, em última análise, nem dos circuitos de financiamento nem das possibilidades de difusão, mas simplesmente da boa vontade – da disponibilidade – de quem ou daquilo que escolhemos para filmar (...). As condições da experiência fazem parte da experiência. (COMOLLI, 2008: 169)

Se a princípio os registros de Corumbiara eram para reunir evidências que levassem a prisão os responsáveis pelo massacre, e foram continuando de cunho investigativo até perceberem que judicialmente não conseguiriam mais que provar a existência dos remanescentes para tentar-lhes uma área protegida, ele acabou concluindo-se como um grande filme, misturando, então, a militância e a arte cinematográfica. Carelli mesmo coloca na sua entrevista feita por Caixeta:
Mas o vídeo tem que ser uma expressão artística, não pode ser um discurso militante, não pode traduzir isso no seu trabalho. Acho inclusive que a capacidade desses filmes, desse produto de ‘intervir’ na realidade, enfim, interessar, emocionar, seduzir o público, trazer uma coisa a mais, isso tem que ser uma expressão artística. (...) O fato de ter uma obra poética ou artística sobre os índios no mercado ou a disposição para as pessoas verem é um ato militante, é uma produção militante nesse sentido e não no do conteúdo ou da narrativa do filme (CARELLI, 2009: 157 – catálogo forumdoc2009).

Referências bibliográficas
CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires – Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008.
CARELLI, Vincent. 2009 – catálogo forumdoc2009
Sob o risco do real. In: COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

domingo, 20 de novembro de 2011

Tatakox: a magia do real

Morte. Experiência última do indivíduo – indizível. Tudo o que se sabe da morte resume-se ao silêncio enigmático com que ela confronta a vida. E como suportá-la? Vivendo-a, nos mostra Tatakox – filme do índio Isael Maxakali, de 2007, sobre um misterioso ritual de iniciação masculina típico da etnia Maxakali.

O suspiro último poderia ser entendido como desligamento, ponto final das relações. No entanto, o ritual tatakox descortina a potência vital que existe na morte – a passagem para o mundo dos espíritos evidencia os elos que possibilitam a existência. Esse ritual mágico foi filmado por Isael com riqueza de detalhes, mas nenhuma tradução. Aos espectadores é oferecida parte naquele transe através de longos planos que acompanham as falas e os movimentos dos corpos daqueles índios sem explicá-los ou apressá-los.

Em torno do que parece ser um barranco, os homens Maxakali se reunem esboçando alguma euforia. Há algo ali. Um índio já velho que aparenta ser um líder começa a dizer que tatakox está ali e que é preciso buscá-lo. Com dificuldade, os homens começam a cavar um buraco com as próprias mãos. Existe uma motivação comum que reúne todos no empenho de cavar – algo entre o salvamento e o reencontro. Ao som de flauta, o êxtase vai tomando conta daqueles sujeitos à medida que a entrada do buraco cresce e que algo de especial parece se tornar próximo. O velho líder dá ordens todo o tempo e anuncia o poder de Tatakox. Após grande esforço em remover a terra, dois corpos aparentemente infantis cobertos por tintura e penugem branca são retirados cuidadosamente da escuridão do buraco e carregados festivamente. Os pequenos corpos estão imóveis e não é possivél percebe-lhes o rosto, pois suas cabeças estão envolvidas por um tecido. Não se sabe se estão vivos ou mortos, mas fica claro que seu resgate é motivo de toda a auforia e êxtase daqueles índios. O som da flauta persiste.

Carregando os corpos, o grupo de Maxakalis toma o caminho da aldeia onde índias trajando coloridos vestidos estão respeitosamente à sua espera. Quando aos braços das mulheres são oferecidos os meninos mortos-vivos um surto se instaura e todas começam a chorar desesperadamente. De braço em braço os corpos inertes são caregados por mulheres em prantos até que os homens se reunem novamente e escolhem dois meninos para acompanhá-los em direçãoa uma casa. As explicações do velho líder indicam que o grupo masculino irá para a casa da religião – mas não se sabe mais do que isso. O pátio da aldeia vai se esvaziando aos poucos. O filme se encerra com a imagem da casa da religião, de onde os espíritos seguem para a mata.

Esse entrelaçamente entre o transe e o real, o mítico e o corpóreo, é o que torna Tatakox um filme comprometido com a alteridade que se propõe filmar. Isael Maxakali capturou imagens, falas e gestos que permitiram que os Maxakali se mostrassem por si mesmos – especialmente por meio daquilo que lhes é caro: o convívio permeado pela crença. Ruben Caixeta de Queiroz atesta que Isael realizou as filmagens de Tatakox a partir do próprio ímpeto, sem prévia instrução de monitores e com equipamentos ruins. A falta de recursos, no entanto, não impediram que Isael conseguisse produzir um filme sublime, capaz de evidenciar a alteridade como fruto de uma relação que convoca ao engajamento. O outro de Tatakox não se explica para quem quer que seja, ao contrário, convida o espectador a participar daquele ritual fantástico. Tatakox é um filme que não reduz aquilo que é, de fato, irredutível. Não tenta explicar aquilo que é da ordem do contato e compromete-se com a riqueza daquele real cheio de magia.

Um ritual de iniciação que tem como força a magia de espíritos e mortos-vivos deixa entrever uma forma de vida que dá brechas para fissuras do real de onde escapam seres e sensações invisíveis, mas incrivelmente sensíveis. Tatakox, o filme e o ritual, mostram de forma sublime que a morte é uma delicada evidência de que existimos na mágica relação com o outro.

CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires – Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A ética que desconstrói a mise-en-scenè

O documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro – Auto-retratos” (2003), dirigido por Paulo Sacramento, retrata o convívio dentro da Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero, o Carandiru. O filme conta com a participação dos próprios detentos que aprenderam como manusear a câmera depois da realização de um workshop que aconteceu dentro da penitenciária.

A penitenciária funciona como uma “mini-sociedade” e tem exemplos do seu cotidiano. Desde os presos que trabalham, freqüentam a academia, participam dos eventos esportivos, como também existe uma forte presença da religião e suas diferentes formas e também a contínua presença do crime, da venda de drogas, o que contrapõe o discurso inicial, no filme e dos responsáveis pela manutenção dos presos e do próprio discurso da existência de uma cadeia: reeducação. O documentário mostra como o sistema carcerário é ineficiente e dificilmente é capaz de recuperar aqueles que estão presos.

Sacramento dá visibilidade ao invisível, considerando que os presos são comumente estereotipados. Além de que a participação dos próprios presos é uma alternativa de tornar o documentário mais “ético”, da mesma maneira que verídico, uma vez que em uma determinada cena o próprio presidiário constrói um “roteiro” do que ele pretendia gravar, e dessa maneira ele também é responsável pelo enquadramento, sem levar em consideração a montagem do filme e as decisões tomadas pelo responsável pela montagem.

A participação dos presos é um elemento importante do filme, porque dessa maneira temos a impressão de que o que nos é transmitido é de realmente verdade, que a partir do momento em que a câmera está dentro da cela, e quem tem o seu domínio é um personagem-diretor, o filme parte para outra “dimensão”, em que toda a verdade, sem alterações se dá ali, sem pré-orientações em relação a discursos e posicionamentos.

Acontece que, como tratado por Jean-Louis Comolli, em um documentário muitas vezes a “mise-en-scène documentária” se faz presente, uma vez que os presos já tem conhecimento sobre o que é ser filmado, sobre a exibição do que é filmado, e dessa maneira representam, ainda que a si mesmos.

“Aquele que filmamos tem uma idéia da coisa, mesmo que nunca tenha sido filmado. Ele a representa para si, prepara-se de acordo com o que imagina ou acredita saber dela.” (COMOLLI, 2008: 53)

Os presos “representam a si mesmos” de maneira sutil, como o ex-lutador, que sonha voltar a lutar, e que ali, nos treinos, na preparação física, mostra para quem quiser ver, que ele está se preparando para caso tenham interesse em tê-lo de volta como lutador. O momento em que ele deixa de ser “o lutador”, que talvez deixe de representar, é quando lhe é concedido o direito de passar uns dias fora da prisão e ali nós observamos a presença do homem que está preso e se emociona com a liberdade, sem máscaras.

“Ao invés de avançar, de partir decididamente para a representação, ela deve permanecer atenta, à espera do Outro, sabendo que, quando ele chegar, será preciso dispor de meios para confrontar e des-naturalizar a representação que envolve e o sufoca, que faz de seu Rosto uma máscara que o torna indiferente, indistinto, dissolvendo-o em meio aos milhares de Outros indiferenciados que povoam o espaço social.” (GUIMARÃES, 2007: 2)

Quando Guimarães destaca que são necessários “meios” para confrontar a representação, um “meio”, ou recurso, utilizado por Sacramento é exatamente a participação dos presos no documentário para aproximá-lo do que é “real” e, mais ainda, tornar o filme mais ético. O preso, ao ser filmado por outro preso, assume uma postura mais relaxada que quando é filmado por alguém da equipe de Sacramento.

“Quando se fala de ética do documentário, a principal preocupação reside justamente no fato de que o filme começa por ser um investimento de poder, dono de meios discursivos e imaginéticos que assujeitam aquele que é filmado, situado de início, em uma posição que lhe permite bem menos desenvoltura do que àquele que filma.” (GUIMARÃES, 2007: 4)

Dessa maneira, a transmissão da câmera para o preso, assume um significado muito maior que o de “co-participação” ou “co-criação”. O preso está “confortável” com o que foi criado. A responsabilidade pelo documentário não é unicamente do diretor, se torna responsabilidade de todos os presos-participantes, que quando filmados por outros presos, quando o poder da câmera e o “controle” é transmitido a eles, a mise-em-scenè documentária se retrai.

GUIMARÃES, César; LIMA, Cristiane. A ética do documentário: o Rosto e os outros. São Paulo, 2007.

COMOLLI, Jean-Louis. Aqueles que filmamos: notas sobra a mise-en-scenè documentário. In: Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

"Tatakox vai tirar os filhos dele de dentro da terra"

Tatakox, da Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho é, entre os documentário indígenas que assisti recentemente, aquele que mais me desafiou. Deixe-me explicar. 

Em Tatakox, o ritual que os Maxakali propõem nos mostrar não nos é apresentado de forma didática. Não há uma explicação, seja por um dos presentes ou por um narrador, sobre o que exatamente está acontecendo ali. Somos literalmente jogados em um ritual já começado. Muito, muito barulho. A câmera, muitas vezes tremida, que percorre corpos em êxtase. A sensação de estar presente. “A potência das imagens e dos sons que lhes permite realizar uma verdadeira antropologia nativa (CAIXETA, 2008, p. 113)”. 

Assim, Tatakox, ao mesmo tempo em que se apresenta como um desafio, causando um imediato estranhamento, também nos conquista, na medida em que somos instigados por tais imagens e sons vibrantes, pela energia contida em seus personagens. Como apontado por Jean Louis Comolli, “é o espectador de cinema que deve ser colocado em crise, isto é, deslocado para fora das suas referencias habituais, em suma, ‘modificado’, por pouco que isso seja (COMOLLI, 2004, P. 157)”. 

Após leituras ligadas à questões de alteridade no documentário, é possível perceber como os índios podem ser “os outros” por excelência. Em “Boca de Lixo”, de Eduardo Coutinho, por exemplo, vemos “os outros” catadores de lixo, à margem da sociedade. Mas não podemos nos esquecer de que aqueles homens e mulheres ainda compartilham uma série de características culturais conosco. E os índios? Nós os conhecemos? Compartilhamos uma cultura? Acredito que a resposta seja não. 

Dessa forma, o fato de ser um filme sobre um ritual indígena filmado por aqueles que participam de tal ritual, ou seja, “o outro filmando a si mesmo”, contribui para esse misto de estranhamento e curiosidade. Vemos os outros produzindo suas imagens, seus próprios pontos de vista sobre sua realidade, sobre sua cultura. 
“Se nossos espectadores televisivos compulsivos e globais têm muitas dificuldade em ver e assimilar o conteúdo de uma alteridade qualquer, feita com nossa ‘linguagem’, teria ele, fora do círculo fechado dos antropólogos e cinéfilos, alguma disposição em ler e compreender a linguagem do outro? (CAIXETA, 2008, p. 110)”.
Tatakox nos chama, quer que participemos do ritual e o vejamos retirar os seus filhos de dentro da terra. É uma experiência quase sensorial. A questão é aceitar o desafio de adentrar no terreno do desconhecido. 


REFERÊNCIAS: 

COMOLLI, CAIXETA, MESQUITA. Não pensar o outro, mas pensar que o outro me pensa. Entrevista. Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 148-169. 

CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires - Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008, p. 98- 125.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A gente quer mostrar o valor que a gente tem e que está escondido.

O Prisioneiro da Grade de Ferro: auto-retratos (2003), de Paulo Sacramento, nos oferece um pouco do cotidiano da Casa de Detenção do Carandiru. Mais do que isso, o filme nos oferece, não sem operar um desajuste em nossa percepção, algumas de suas janelas, de suas paredes, de seus quartos. Com eles - antes deles - nos oferece alguns dos rostos que os habitam. Auto-retratos.

O filme, produzido a partir de uma oficina de vídeo e som que durou sete meses dentro da penitenciária, permitiu que a Casa de Detenção pudesse ser registrada pelos próprios detentos. As imagens capturadas, então, não deixam de registrar vestígios de seus corpos e de seus afetos (de seus desejos). Convocados a assumir uma certa independência diante da câmera (mesmo que mediada por Sacramento), os detentos parecem tomar para si mesmos uma necessidade de auto-representação. À medida em que é compartilhado um saber técnico - em que se oferece ao sujeito filmado, a própria câmera - os detentos parecem se mostrar investidos de uma potencialidade da fala. É importante lembrar que se trata dos sem parcela dos sem parcela: os presidiários - as "inúmeras e diversas 'vidas sem qualidade', mergulhadas nesse limbo impessoal para o qual são empurradas." (GUIMARÃES, 2010: 187). O encarcerado que emudeceu à distância da sociedade comum. Oferecer a câmera a ele - o aparato fílmico carregado de toda potência da escritura e da visibilidade - é permitir também a ele uma parte na partilha.

Antes do filme, talvez, socialmente os presos ainda pudessem ser reconhecidos, apenas isso, mas através de rostos desconfigurados, rígidos, fixados pelos predicados que os delimitavam (GUIMARÃES, 2010:188), ou antes disso, fixados pela fotografia que os catalogava junto com o número de prontuário, como também nos faz ver o filme. Mas se essa fotografia é visível, aqui, ela é acompanhada de sua voz e, em sequência, de sua duração e instabilidade. O filme permite que o homem, efetivamente, como propõe Giorgio Agamben, capture a manifestação de sua aparência, dando-lhe um nome, uma face, uma semelhança (AGAMBEN apud GUIMARÃES, 2010: 187), a exposição de seu rosto.

Há uma abertura no próprio procedimento do filme que não dá a ver um presidiário que, diariamente, atravessa as imagens midiáticas ou mesmo aquelas de um imaginário comum. O filme não apresenta, por exemplo, presos na iminência de uma rebelião ou que ocupam o quadro carregados pela gravidade dos crimes que cometerem. Antes disso, ao dar a ver singularidades que atravessam um cotidiano, uma duração, acaba por alargar seu mundo de possíveis. "É preciso sobretudo, tempo, tempo puro, duração, para que o homem ordinário ao longo do filme, alcance seu devir personagem, que ele surja como um ser em transformação e que possa, por isso mesmo, deslocar, transformar seu próprio espectador". (GUIMARÃES, 2007: 147)

Podemos perceber no filme, de certa forma, uma camada informativa - o espectador que desconhece o universo da Casa de Detenção, acompanha, no filme, seus rituais diários e assiste aos relatos dos detentos, ansioso por ver sempre mais. Nessa camada, poderíamos entender que se configuram algumas denúncias: como da precariedade do sistema de saúde, por exemplo. No entanto, acreditamos que o que o filme agrega enquanto potência política está no gesto de dar a ver regimes do sensível - daqueles de quem a sociedade parecia já ter decaptado toda sensibilidade. Vemos, então, belos planos do pôr-do-sol, das grades e das janelas, as inscrições e retratos nas paredes, das organizações singulares de cada cela, os desenhos, as esculturas, as marcas deixadas nos corpos, seus objetos pessoais, suas roupas e raps.

O filme acaba por reconfigurar "o mapa do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da produção, reprodução e submissão." ( RANCIÈRE, 2005: 59). Daí, vemos os detentos resistindo a monotonia dos dias, se ocupando das mais diversas funções que eles mesmos parecem criar ali dentro, esculpir, tatuar - inventar o próprio aparelho para tatuar, montar miniaturas de barcos, desenhar... O filme acaba por configurar uma partilha do sensível na medida em que dá a ver, a um comum, uma re-distribuição das maneiras de ser e das ocupações nesse espaço. O gesto mais potente do filme parece ser, assim, a reconfiguração do meu próprio campo perceptivo, re-estruturação do outro, da estrutura outrem. (GUIMARÃES, 2010: 190).


Bibliografia:

GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar. Ensaios no Real. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010.

GUIMARÃES, César. O devir todo mundo do documentário. In: SELDMAYER, Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org.). O comum e a experiência da linguagem. Belo horizonte: Editora UFMG, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2005.


O ver em Santo Forte (1997)



Dona Thereza interfere na cena para apontar um episódio inédito à equipe de filmagem sobre sua irmã. Sua sobrinha, ateia, contava seguramente sobre uma incorporação de Dona Thereza, que vinha avisar sobre o pai que iria morrer, e a sobrinha aproveitou para fazer pedidos, um emprego, passar de ano no colégio. Dona Thereza ao fundo explica que seu orixá é muito boazinha, ela encaminha as pessoas. Um corte e passamos ao momento em que Dona Thereza chama atenção para o caso de sua irmã, que se perdeu dentro de um banco, por causa de uma pomba gira que ela tinha — sua irmã abusava, ela conta, chegou um ponto de beber a cachaça dela.

Um das cenas mais marcante de Santo Forte (1997), de Eduardo Coutinho, talvez seja essa em que Dona Thereza encena sua relação com entidades para a câmera. A narração de Dona Thereza coloca em cena a sua própria história, sem medo de que sua performance comece a falhar, sua fala balbuciar; fala com a intensidade da máquina que funcionando bem tem o rumor da língua de Barthes (2004:93), e com uma posse do corpo que se mostra na gesticulação e na calma de sua fala pausada. É importante, então, pensar a auto-mise-en-scène criada por cada personagem dirigida ao olhar não só da câmera, mas dos envolvidos em cena. Dona Thereza ao falar sobre o seu orixá ao fundo, enquanto sua sobrinha relembra a incorporação do orixá, é acionada pela fala da sobrinha. Acionada como se por uma vontade de colocar a equipe de filmagem em cena: ela dá mais detalhes sobre a história a que todos estão atentos. Ainda nessa cena, o apontar de Dona Thereza para outra história, coloca em cena mais outra intenção, podemos pensar na contribuição que faz ela para o documentário, ao dizer que ainda não contou essa história, mas também pela ligação que por efeito de montagem é feito: Dona Thereza fala dos perigos dos abusos das entidades, na sequência de sua sobrinha ter falado sobre os pedidos feito às entidades. Pensar a auto-mise-en-scène coloca em evidência o desejo do personagem de se mostrar, e em como performar na cena.

A essa cena em que Dona Thereza se apropria do espaço filmado, dirigindo as palavras a seu sabor, contrapomos aos outros personagens que vemos retratados em suas casas em um enquadramento quase clássico em que desfiam suas histórias religiosas eles mesmos, com um incentivo de interlocução que Coutinho assume sem muito interferir. Às perguntas de Coutinho não respondem secamente, as suas histórias são as respostas, como se usassem suas vidas como exemplo para as respostas.

Entre as primeiras pergunta que primeiro se coloca é por que fazer um filme sobre experiências religiosas? O que elas poderiam nos dizer? Essa pergunta torna-se importante para pensar Santo Forte (1997), de Eduardo Coutinho, pelo desejo de não cairmos em uma valoração das experiências dos sujeitos filmados em termos pouco produtivos, como se quiséssemos colocá-los sob um princípio de veracidade ou validade. A montagem de Santo Forte já nos evoca essa questão. Entre momentos de outros personagens, Carla que conta sobre as surras de santo, a imediata menção de que o acontecimento ocorreu em sua sala, há um corte na cena, e é mostrada a sala em silêncio, e a menção da pomba-gira, um outro corte e vemos uma imagem modelada de uma pomba-gira. A imagem que vemos nesses cortes são imagens que comprovam pouca coisa: o que pode uma imagem de uma entidade, ou um espaço filmado nos comprovar além do que já vemos?

A essas imagens que dizem pouco, que dissecam os espaços e mostram uma cristalização das entidades em uma matéria, temos no entanto experiências que são transformadas nas narrativas em formas de ver o mundo. “O olho está no limite da imagem. O olhar é, ele também, uma produção.” — nos diz Comolli (2008:98). A produção de um olhar para Carla passa por sua experiência com a religiosidade — ela conta, entre outros ensinamentos, que se alguém sai da casa para pedir o mal para outra, não é a entidade que é a ruim, é a pessoa, pois é ela que pede o mal para alguém.

Ao passar da valoração das histórias em termos de validade, podemos constituir espaços comuns nessas histórias, mesmo se somos nós de qualquer crença ou céticos. Pois mesmo que fantásticas essas histórias contadas pelos personagens de Santo Forte não estão em outro lugar que não este mundo em que coabitamos. Assim como o título que dá às notas sobre Santo Forte que dá Cláudia Mesquita (2008), “Inventar para Sugerir”, se acreditamos ou não, podemos antes de tudo procurar nessas histórias os encontros que nos levariam a ver mais que alento para a dura realidade vivida pelos habitantes da Vila Parque da Cidade, mas antes experiências do mundo no nosso mundo.


REFERÊNCIAS
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. IN: ______. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.