Corumbiara: ética, câmera, ação
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Pensar Corumbiara passa necessariamente por um movimento de não pensar Corumbiara. A própria relação que a imagem desperta é a relação que deve ser ignorada para, só então, ver o que está realmente em jogo. Refiro-me a esse movimento, pois o exercício da ética na câmera desse documentário não se manifesta na apresentação ao espectador. Com efeito, o exercício da ética na câmera assim se chama justamente por preceder da relação com o espectador. O que está em jogo é uma relação dual imbricada das potencialidades políticas da reprodução e da dimensão política do instrumento ótico, que são, na verdade, partes de um mesmo dilema.
Quando digo que o exercício da ética na câmera desse documentário não se manifesta na apresentação ao espectador, me refiro a um exceder que o pensar sobre a ética requer para sequer ressoar o conflito de fato. A crítica da justiça de Vincent, quando despida do juízo de Vincent, transparece uma dimensão política do sistema de justiça: O sistema judicial é, ele próprio, parte de um sistema (meta) político, para desalento de Montesquieu. Mas o mais importante, é dizer que essa relação precede o espectador, em realidade, precede até mesmo o documentário.
A Amazônia, o índio, a militância e o capital existem antes mesmo de Vincent filmá-los, mas é na película que a relevância do movimento da ética (da contraposição de uma ética do sujeito centrado em si que se entende como sujeito no mundo, com uma ética transcendente que deseja encontrar uma ordem de responsabilidade coletiva do justo e do bom independente do sujeito) é ilustrada. E é a esse movimento que me refiro como dimensão política do instrumento ótico: a um conflito político dificilmente discernível de um conflito ético, onde a ação, agora inserida nesses dois pontos nos indaga sobre suas capacidades:
“A espontaneidade humana, politicamente falando, significa que não sabemos os resultados de nossas ações quando agimos e que, se soubéssemos, não seriámos livres. (KOHN, apud ARENDT, 2008, pág. 33)
A ação não é ciente dos impactos da ação, e se fora não seria ação. Entretanto, é essa derrocada das possibilidades de ciência que inviabilizam a política. Talvez mais: a própria possibilidade de ciência seja o âmago da política. E é aí que surge o questionamento sobre as possibilidades éticas da política e que só surgem, em Corumbiara, no que chamei de possibilidades políticas da reprodução. Saber os resultados das ações (como já dito, somente possível de forma póstera) requer a inclusão daquilo que em outras discussões poderia ser tratado, com uma naturalidade maior do que suposta, como concernente.
Portanto, o que aponto é que as dimensões políticas (da ciência da ação) na câmera e na reprodução demandam uma separação heurística por natureza, pois de fato o dilema apontado em Corumbiara é maior do que simplesmente o que transcorre no vídeo, maior ainda do que Vincent insiste em afirmar. E buscar um caminho de pensamento que se limite a qualquer uma dessas será, de saída, incipiente. Afinal, pensar Corumbiara passa necessariamente por um movimento de não pensar Corumbiara.
REFERÊNCIA
ARENDT, Hannah. A promessa da política; organização e introdução Jerome Kohn; tradução Pedro Jorgensen Jr.. Rio de Janeiro, Editora Difel, 2008
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