Tamira Marinho
Corumbiara, filme que começou a ser realizado para tentar provar o extermínio de índios em uma gleba de Rondônia, é exemplar quanto à delicadeza das espécies de contatos que apresenta.
O contato que mais me impressiona, e emociona , é o ocasionado pelo momento em que a equipe do indigenista Marcelo Santos, acompanhada pelo “fotógrafo documentarista indigenista” Vincent Carelli, encontra na mata pela primeira vez os dois índios isolados Canoê. O impasse da equipe de se aproximar ou não – por um risco que ambos os lados deviam supor daquele encontro - chega a ser poética por conseguir condensar em imagens tantas questões relacionadas à alteridade. Alí se materializa a questão de que a alteridade é da qualidade do inigualável, e muito mais do que aquilo “que não sou eu”, é da ordem do mistério, do imprevisível e inapreensível. Nessa cena percebe-se a distancia instransponível entre um eu e o outro, e emociona, não somente pela raridade da cena que foi filmada, mas pelo seu desfecho: aquelas figuras icônicas do que poderia caracterizar “outrens” decidem conhecer-se, num pacto de confiança e curiosidade.
Essa situação leva a pensar em como se deu a partir daí o que eu chamaria de segundo tipo de contato, o da câmera com os sujeitos filmados. Esse tipo de contato, além de um encontro, é o que determina a produção de uma imagem. Imagem, a qual carrega desde o princípio um ponto de vista, o olhar daquele que filma; ainda que este queira dar espaço para os filmados, fazer deles sujeitos e não somente objetos da filmagem. Filmes como o Corumbiara produziram imagens na inocência dos filmados, de índios isolados, os quais não fazem parte do imaginário comum do saber da câmera, estão fora da preocupação com a imagem e tentativa de adequação da mesma, não têm consciência do que é aquele olhar da câmera para eles. Corumbiara tem aí também seu mérito por ser um registro dessa auto misce-en-scène que, a meu ver, supera em despreparo dos filmados àquelas feitas pelas primeiras imagens em película pelos irmãos Lumiére.
Outro aspecto relevante de Corumbiara é o fato de a obra consiga carregar claramente um ponto de vista desde seu início, mas permanecendo-se aberta ao que o real poderia oferecer .
Ainda que Carelli não tivesse estudado cinema, o filme, pelo seu modo de realização, encaixa-se bem no que Jean-Louis Comolli diz em Sob o risco do real:
o documentário não tem outra escolha a não ser se realizar sob o risco do real. O imperativo do ‘como filmar’, central no trabalho do cineasta, coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme. A prática do cinema documentário não depende, em última análise, nem dos circuitos de financiamento nem das possibilidades de difusão, mas simplesmente da boa vontade – da disponibilidade – de quem ou daquilo que escolhemos para filmar (...). As condições da experiência fazem parte da experiência. (COMOLLI, 2008: 169)
Se a princípio os registros de Corumbiara eram para reunir evidências que levassem a prisão os responsáveis pelo massacre, e foram continuando de cunho investigativo até perceberem que judicialmente não conseguiriam mais que provar a existência dos remanescentes para tentar-lhes uma área protegida, ele acabou concluindo-se como um grande filme, misturando, então, a militância e a arte cinematográfica. Carelli mesmo coloca na sua entrevista feita por Caixeta:
Mas o vídeo tem que ser uma expressão artística, não pode ser um discurso militante, não pode traduzir isso no seu trabalho. Acho inclusive que a capacidade desses filmes, desse produto de ‘intervir’ na realidade, enfim, interessar, emocionar, seduzir o público, trazer uma coisa a mais, isso tem que ser uma expressão artística. (...) O fato de ter uma obra poética ou artística sobre os índios no mercado ou a disposição para as pessoas verem é um ato militante, é uma produção militante nesse sentido e não no do conteúdo ou da narrativa do filme (CARELLI, 2009: 157 – catálogo forumdoc2009).
Referências bibliográficas
CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires – Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008.
CARELLI, Vincent. 2009 – catálogo forumdoc2009
Sob o risco do real. In: COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
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