O Projeto Vídeo nas Aldeias foi fundado em 1987 com o objetivo de levar a prática cinematográfica a serviço da cultura e dos interesses indígenas. Orientados principalmente pelo indigenista e cineasta Vincent Carelli, índios de diferentes etnias que habitam o território brasileiro viram na câmera uma forma de resgatar e preservar tradições. Porém, além disso, talvez o mais interessante de se apreender desta prática cinematográfica seja a forma como nos é apresentada a visão de mundo indígena, a partir da compreensão do tempo e espaço elaborada por eles mesmos.
De acordo com Rubem Queiroz (2008), a união do cinema, primordialmente ocidental, ao pensamento indígena se faz de forma sublime porque ambos compartilham da mesma essência em sua ontologia. A primazia das qualidades sensíveis constituintes do pensamento selvagem se relaciona com o foco no corpo, na mise-en-scène do sujeito filmado proporcionado pelo dispositivo cinematográfico e tão explorado pelo cinema indígena.
No entanto, esse encontro entre cinema e índios e a relação de um com o outro praticamente intrínseca, como sugere Queiroz, não se deu de forma rápida e fácil. Um longo caminho foi percorrido até que se encontrasse um ponto de convergência entre a linguagem cinematográfica ocidental, a elaboração indígena e também os interesses e expectativas do grande público ao entrar em contato com esse tipo de obra. Como é possível perceber nos primeiros filmes produzidos dentro do projeto, ainda se carregava consigo as influências do modo de fazer televisivo, procurando mais introduzir e explicar o que se passa na tela, evidenciando, ainda, uma distância entre aquele que filma e aquele filmado.
A Festa da Moça (1987), por exemplo, mantém a apresentação e o comentário do diretor a respeito daquilo que vemos. É importante, porém, ressaltar que isso não se dá com o intuito de reproduzir uma prática já consagrada e assimilada. Antes é um tatear na direção de, senão acionar, aproximar-se daquela alteridade tão originária quanto desconhecida do povo brasileiro. Filmando e mostrando o resultado aos Nambiquara, tribo habitante do Mato Grosso, já é possível perceber a potência que aquelas imagens possuem. No ato do assistir e não se identificar com aquilo que foram outrora, os índios decidem reproduzir o ritual filmado da forma como manda a tradição, sem roupas e realizando a prática da perfuração do rosto, há anos abandonada.
Já em Tatakox (2007), realizado pelo povo Maxakali, habitante de Minas Gerais, com o apoio do Projeto Vídeo nas Aldeias, o aparato cinematográfico está inteiramente na mão dos índios. Somos, os espectadores, jogados no meio do ritual de iniciação dos meninos sem aviso prévio, sem preparação, sem tradução. O longo plano-sequência, praticamente editado no ato da filmagem, dá conta de toda a movimentação em torno da retirada dos espíritos das crianças de dentro de um buraco e o som constante e monótono emitidos pelos instrumentos indígenas contribuem para intensificar o clima de tensão que ocupa o plano. Tensão para os espectadores que permanecem o tempo todo como que se perguntando: “o que é isso? O que está acontecendo?”. De fato, estamos sob o risco do real, tão perto, tão dentro do ritual que procuramos construir uma significação forçada, mas não no sentido negativo, e sim na medida em que, uma vez dentro, dela precisamos para estabelecer contato.
É possível dizer que Tatakox proporciona uma espécie de encontro primordial, semelhante ao que imaginamos que foi o primeiro contato entre brancos e índios há mais de 500 anos nessas terras. Fascinante notar que estes encontros continuam a acontecer e a eles temos acesso através do cinema, como é o caso de Corumbiara (2009). Este não é essencialmente o assunto do filme, que trata da ocupação ilegal de terras indígenas no sul de Rondônia, bem como do desmatamento e do massacre dos povos. No entanto, o primeiro contato de Vincent Carelli e sua equipe com dois índios da etnia Canoe é tão significativo e instigante que aqui o damos atenção especial.
O “desleixo” com a câmera no momento em que os dois índios surgem no quadro e se aproximam da equipe evidencia a importância daquele momento. É preciso tocar a mão deles, cumprimentá-los e o espectador como que olhando meio para baixo, meio de lado, pode interpretar a situação com um “algo muito especial está acontecendo ali”. O aperto de mão que dura no plano evidencia que a expectativa está tanto do lado “branco” quanto do lado indígena.
Se a comunicação verbal ainda não era possível naquelas primeiras horas que a equipe de Vincent e os Canoe passaram juntos, os gestos tinham poder. Tanto poder que Tiramantu, a índia que tomou a cena, hipnotizava aqueles que a observavam quando ela narrava, à sua maneira, a aproximação dos brancos. Sem entender uma palavra do que índia e Pirá, seu irmão, diziam, os gestos dos irmãos permitiram adentrar mais a floresta e aquele mundo selvagem e desconhecido, tão fascinante quanto esperado, afinal, o contato e as imagens daqueles índios seriam a prova da sua existência perante o Estado brasileiro.
Referências bibliográficas:
CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires - Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008, p. 98- 125.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Por Bárbara França
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