O Prisioneiro da Grade de Ferro: auto-retratos (2003), de Paulo Sacramento, nos oferece um pouco do cotidiano da Casa de Detenção do Carandiru. Mais do que isso, o filme nos oferece, não sem operar um desajuste em nossa percepção, algumas de suas janelas, de suas paredes, de seus quartos. Com eles - antes deles - nos oferece alguns dos rostos que os habitam. Auto-retratos.
O filme, produzido a partir de uma oficina de vídeo e som que durou sete meses dentro da penitenciária, permitiu que a Casa de Detenção pudesse ser registrada pelos próprios detentos. As imagens capturadas, então, não deixam de registrar vestígios de seus corpos e de seus afetos (de seus desejos). Convocados a assumir uma certa independência diante da câmera (mesmo que mediada por Sacramento), os detentos parecem tomar para si mesmos uma necessidade de auto-representação. À medida em que é compartilhado um saber técnico - em que se oferece ao sujeito filmado, a própria câmera - os detentos parecem se mostrar investidos de uma potencialidade da fala. É importante lembrar que se trata dos sem parcela dos sem parcela: os presidiários - as "inúmeras e diversas 'vidas sem qualidade', mergulhadas nesse limbo impessoal para o qual são empurradas." (GUIMARÃES, 2010: 187). O encarcerado que emudeceu à distância da sociedade comum. Oferecer a câmera a ele - o aparato fílmico carregado de toda potência da escritura e da visibilidade - é permitir também a ele uma parte na partilha.
Antes do filme, talvez, socialmente os presos ainda pudessem ser reconhecidos, apenas isso, mas através de rostos desconfigurados, rígidos, fixados pelos predicados que os delimitavam (GUIMARÃES, 2010:188), ou antes disso, fixados pela fotografia que os catalogava junto com o número de prontuário, como também nos faz ver o filme. Mas se essa fotografia é visível, aqui, ela é acompanhada de sua voz e, em sequência, de sua duração e instabilidade. O filme permite que o homem, efetivamente, como propõe Giorgio Agamben, capture a manifestação de sua aparência, dando-lhe um nome, uma face, uma semelhança (AGAMBEN apud GUIMARÃES, 2010: 187), a exposição de seu rosto.
Há uma abertura no próprio procedimento do filme que não dá a ver um presidiário que, diariamente, atravessa as imagens midiáticas ou mesmo aquelas de um imaginário comum. O filme não apresenta, por exemplo, presos na iminência de uma rebelião ou que ocupam o quadro carregados pela gravidade dos crimes que cometerem. Antes disso, ao dar a ver singularidades que atravessam um cotidiano, uma duração, acaba por alargar seu mundo de possíveis. "É preciso sobretudo, tempo, tempo puro, duração, para que o homem ordinário ao longo do filme, alcance seu devir personagem, que ele surja como um ser em transformação e que possa, por isso mesmo, deslocar, transformar seu próprio espectador". (GUIMARÃES, 2007: 147)
Podemos perceber no filme, de certa forma, uma camada informativa - o espectador que desconhece o universo da Casa de Detenção, acompanha, no filme, seus rituais diários e assiste aos relatos dos detentos, ansioso por ver sempre mais. Nessa camada, poderíamos entender que se configuram algumas denúncias: como da precariedade do sistema de saúde, por exemplo. No entanto, acreditamos que o que o filme agrega enquanto potência política está no gesto de dar a ver regimes do sensível - daqueles de quem a sociedade parecia já ter decaptado toda sensibilidade. Vemos, então, belos planos do pôr-do-sol, das grades e das janelas, as inscrições e retratos nas paredes, das organizações singulares de cada cela, os desenhos, as esculturas, as marcas deixadas nos corpos, seus objetos pessoais, suas roupas e raps.
O filme acaba por reconfigurar "o mapa do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da produção, reprodução e submissão." ( RANCIÈRE, 2005: 59). Daí, vemos os detentos resistindo a monotonia dos dias, se ocupando das mais diversas funções que eles mesmos parecem criar ali dentro, esculpir, tatuar - inventar o próprio aparelho para tatuar, montar miniaturas de barcos, desenhar... O filme acaba por configurar uma partilha do sensível na medida em que dá a ver, a um comum, uma re-distribuição das maneiras de ser e das ocupações nesse espaço. O gesto mais potente do filme parece ser, assim, a reconfiguração do meu próprio campo perceptivo, re-estruturação do outro, da estrutura outrem. (GUIMARÃES, 2010: 190).
Bibliografia:
GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar. Ensaios no Real. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010.
GUIMARÃES, César. O devir todo mundo do documentário. In: SELDMAYER, Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (org.). O comum e a experiência da linguagem. Belo horizonte: Editora UFMG, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2005.
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