domingo, 20 de novembro de 2011

Tatakox: a magia do real

Morte. Experiência última do indivíduo – indizível. Tudo o que se sabe da morte resume-se ao silêncio enigmático com que ela confronta a vida. E como suportá-la? Vivendo-a, nos mostra Tatakox – filme do índio Isael Maxakali, de 2007, sobre um misterioso ritual de iniciação masculina típico da etnia Maxakali.

O suspiro último poderia ser entendido como desligamento, ponto final das relações. No entanto, o ritual tatakox descortina a potência vital que existe na morte – a passagem para o mundo dos espíritos evidencia os elos que possibilitam a existência. Esse ritual mágico foi filmado por Isael com riqueza de detalhes, mas nenhuma tradução. Aos espectadores é oferecida parte naquele transe através de longos planos que acompanham as falas e os movimentos dos corpos daqueles índios sem explicá-los ou apressá-los.

Em torno do que parece ser um barranco, os homens Maxakali se reunem esboçando alguma euforia. Há algo ali. Um índio já velho que aparenta ser um líder começa a dizer que tatakox está ali e que é preciso buscá-lo. Com dificuldade, os homens começam a cavar um buraco com as próprias mãos. Existe uma motivação comum que reúne todos no empenho de cavar – algo entre o salvamento e o reencontro. Ao som de flauta, o êxtase vai tomando conta daqueles sujeitos à medida que a entrada do buraco cresce e que algo de especial parece se tornar próximo. O velho líder dá ordens todo o tempo e anuncia o poder de Tatakox. Após grande esforço em remover a terra, dois corpos aparentemente infantis cobertos por tintura e penugem branca são retirados cuidadosamente da escuridão do buraco e carregados festivamente. Os pequenos corpos estão imóveis e não é possivél percebe-lhes o rosto, pois suas cabeças estão envolvidas por um tecido. Não se sabe se estão vivos ou mortos, mas fica claro que seu resgate é motivo de toda a auforia e êxtase daqueles índios. O som da flauta persiste.

Carregando os corpos, o grupo de Maxakalis toma o caminho da aldeia onde índias trajando coloridos vestidos estão respeitosamente à sua espera. Quando aos braços das mulheres são oferecidos os meninos mortos-vivos um surto se instaura e todas começam a chorar desesperadamente. De braço em braço os corpos inertes são caregados por mulheres em prantos até que os homens se reunem novamente e escolhem dois meninos para acompanhá-los em direçãoa uma casa. As explicações do velho líder indicam que o grupo masculino irá para a casa da religião – mas não se sabe mais do que isso. O pátio da aldeia vai se esvaziando aos poucos. O filme se encerra com a imagem da casa da religião, de onde os espíritos seguem para a mata.

Esse entrelaçamente entre o transe e o real, o mítico e o corpóreo, é o que torna Tatakox um filme comprometido com a alteridade que se propõe filmar. Isael Maxakali capturou imagens, falas e gestos que permitiram que os Maxakali se mostrassem por si mesmos – especialmente por meio daquilo que lhes é caro: o convívio permeado pela crença. Ruben Caixeta de Queiroz atesta que Isael realizou as filmagens de Tatakox a partir do próprio ímpeto, sem prévia instrução de monitores e com equipamentos ruins. A falta de recursos, no entanto, não impediram que Isael conseguisse produzir um filme sublime, capaz de evidenciar a alteridade como fruto de uma relação que convoca ao engajamento. O outro de Tatakox não se explica para quem quer que seja, ao contrário, convida o espectador a participar daquele ritual fantástico. Tatakox é um filme que não reduz aquilo que é, de fato, irredutível. Não tenta explicar aquilo que é da ordem do contato e compromete-se com a riqueza daquele real cheio de magia.

Um ritual de iniciação que tem como força a magia de espíritos e mortos-vivos deixa entrever uma forma de vida que dá brechas para fissuras do real de onde escapam seres e sensações invisíveis, mas incrivelmente sensíveis. Tatakox, o filme e o ritual, mostram de forma sublime que a morte é uma delicada evidência de que existimos na mágica relação com o outro.

CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires – Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008.

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