terça-feira, 15 de novembro de 2011

Tatakox: a alteridade como lugar da impossibilidade.

O filme começa com um índio em primeiro plano que conversa no idioma maxakali e aponta para um buraco no chão. Em seguida ele assobia e um som que se assemelha a um berrante compõe a paisagem sonora. Índios paramentados com pinturas corporais, tecidos e folhas nos rostos surgem de todos os lados, num bailado que circunda o pequeno buraco antes mostrado. No instante seguinte alguns deles já estão cavando com as mãos, paus e com o auxílio de enxadas. Quando já aumentaram o diâmetro da cavidade, um deles adentra e – para surpresa do espectador – tira de lá dois meninos pintados, com a cabeça tapada por uma espécie de tecido e cobertos de penugens brancas no corpo. Aparentemente debilitados, eles são carregados para a aldeia que os recebe. As mulheres e crianças observam e interagem. O ritual de iniciação dos garotos deixa em aberto muitas questões para quem não compartilha da cultura maxakali ou não sabe como funciona o Tatakox.

Quase como um integrante do ritual, a câmera acompanha os movimentos e parece, harmoniosamente, dançar ao som produzido pelos índios. A paisagem é bem enquadrada pela lente e, às vezes com certa estaticidade, ela registra os maxakalis que passam em velocidade na sua frente, correndo ou em rodopios. O ritmo frenético das imagens no momento da escavação e os quadros que se aproximam e se afastam do buraco no chão, confirmam a posição que a câmera assume de mais um corpo entre os corpos. A separação entre quem filma e quem é filmado parece ser delimitada somente por quem possui o aparato tecnológico e quem não possui. Os planos são longos e há poucos cortes, como que evidenciando a necessidade de se mostrar tudo, para transmitir a iniciação dos meninos da forma mais fidedigna possível.

Do mesmo modo que as imagens, o som produzido pelos instrumentos de sopro aparece de modo bem natural. Os silvos e os zumbidos vão se sobrepondo as imagens causando uma espécie de transe. Durante todo o filme, e sem pausas, ele parece representar uma mistura alquímica entre o real e a espiritualidade. E quando no pátio da aldeia o choro das mulheres e crianças se junta à paisagem sonora, a ideia de que se trata de uma significação do outro plano – o não material – torna mais evidente. O espectador se choca com a alteridade do desconhecido, dos sons que enlevam e/ou atordoam. 

As relações de contraste são suavizadas pelos pequenos gestos que a cultura do “homem branco” entende, tal qual um olhar ou um sorriso. Mas, quem assiste se vê, por vezes, perdido em meio ao bailar, aos gritos e ao comportamento dos indígenas. O ritual encerra mensagens ocultas intraduzíveis, que se mostram impenetráveis. A alteridade surge como o lugar da impossibilidade, o que talvez confira a beleza ao filme, como expõe Jean-Louis Comolli:

“O cinema traz o real como aquilo que, filmado, não é totalmente filmável, excesso ou falta, transbordamento ou limite – todos os buracos ou todos os contornos que de pronto nos é dado a sentir, experimentar, pensar. Sim, é um paradoxo que neste fim de século ainda caiba ao cinema assumir a tarefa de representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que as ficções que nos rodeiam nos escondem escrupulosamente: que a missão de representar esbarre naquilo que ela não pode representar. O impossível da missão, nosso segredo preferido.” (COMOLLI, 2008, p.148 e 149)

Não é possível ter certeza se a lamentação das mães é de fato um choro de dor ou uma encenação, se a câmera catalisa essas reações ou se elas são espontâneas. Os meninos estavam há quanto tempo dentro do buraco? Eles estão de fato desmaiados ou em transe? Quando as relações de identificação não se completam, a pergunta fica latente: é preciso entender ou deixar que o outro nos afete? A segunda opção parece ser mais condizente com o filme de Isael Maxakali. Ao não apontar um caminho para se seguir, o espectador vai tateando e apreendendo o que sua sensibilidade permite. 

O final do filme-ritual chega e deixa em aberto as várias lacunas que se colocaram durante sua construção. Já é noite agora e em um movimento de dissipação não há mais ninguém que dance ou produza sons no pátio. O silêncio vai tomando conta do quadro e das mulheres que vão lentamente sendo apagadas nele.


Por João Paulo Rabelo.


Imagem que ilustra este post: cena do filme Tatakox (2007), de Isael Maxakali.

Referência

COMOLLI, Jean-Louis. Viagem documentária aos redutores de cabeça. In: Comolli, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2008.

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