segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Tatakox: quando a câmera dança


Agora vimos direito.

Todos os tikmu’um vão ver no DVD

A comunidade vai ver.

Dentro da nossa aldeia esses rituais não acabam.

O ritual dos ancestrais não podemos esquecer.


Em Tatakox a câmera nos convida para o ritual. De uma forma que parece mística, ela é incorporada à cerimônia e tal como aos jovens maxacalis, à ela é dada a missão de perpetuar a tradição, de não deixar que o ritual seja esquecido. E o que vemos – ouvimos e sentimos – através do dispositivo nos leva para dentro do rito de uma maneira estranha, e o estranhamento nos traz a certeza de que também participamos.

Hoje, o problema do documentário não é colocar em cena aqueles que filmamos, mas deixar aparecer a mis-en-scène deles. A mis-en-scène é um fato compartilhado, uma relação. (COMOLLI apud CAIXETA, 2008, p. 119).

Acredito que o encantamento e o poder das imagens em Tatakox estão justamente nisso que Comolli aponta, na forma como os maxacali se colocam, colocam as imagens da aldeia e do restante da tribo diante da câmera e colocam a própria câmera dentro da cerimônia, onde o filme se confunde com o ritual. O cinegrafista é também um maxacali e, uma vez que a câmera se torna parte do ritual, o aparelho é atravessado por sua identidade, é como se o cinegrafista transferisse sua natureza para a câmera.

Dessa forma parece surgir uma estética própria maxacali. O filme não traz meramente um contato com uma representação da cultura maxacali, Tatakox não é apenas um conjunto de símbolos maxacalis, é parte da essência deles, do que eles são de fato. Não nos resta outra saída a não ser ver Tatakox como um indígena vê, pois trata-se de uma mis-en-scène selvagem.

Nesse ponto é importante considerar que “o pensamento mítico (selvagem, neolítico) se expressa mais com o corpo da palavra (as imagens, os gestos) do que com a gramática da linguagem, isto é, a tradição e a memória estão presentes antes e acima de tudo no corpo das pessoas (...) das sociedades indígenas” (CAIXETA, 2008, p. 117). Pouco compreendemos do que se passa no ritual, mas ainda que num primeiro momento sejamos povoados por diversas questões, o que realmente nos incomoda não são nossas dúvidas, é a afetação que o filme provoca. Afetação que vem dessa nova forma de olhar. A partir daí, de fato, nada mais precisa ser explicado ou entendido, se o olhar e a mis-en-scène são indígenas, a racionalização branca não dá conta dessa afetação, ela afasta a essência. Tudo que precisamos em Tatakox é nos deixar guiar pelo olhar indígena, deixar que ele nos coloque em cena, devemos apenas ver, ouvir e sentir.

E por que o olhar indígena é tão importante?

E é assim que, de ritual em ritual, de filme em filme, a sociedade maxacali vem insistindo em resistir, em marcar seu ritmo e seu tempo, no meio do mundo dos brancos, entre o céu e a terra, o corpo e o espírito. (CAIXETA, 2008, p. 123)

Vemos Tatakox através de um outro olhar, acessamos aquele ritual de uma maneira que não é a nossa forma racional branca e ocidental de acessar aquilo que nos é diferente.

Talvez seja essa uma forma de acessar a alteridade sem reduzir o outro: permitir sua auto mis-em-scène, ver o outro como ele vê, acessá-lo a seu próprio modo, através de sua própria forma de compreender. Se enquadramos um maxacali pelo nosso enquadramento, se procuramos traduzi-lo em nossas palavras e entendê-lo pela nossa racionalidade, então colocamos na imagem que temos dele algo de nossa essência em detrimento da essência dele, e se a essência do outro já não mais está presente, onde está o outro?

Na primeira filmagem de Tatakox realizada pela Aldeia Verde um indígena chamado Zé Prefeito, quando questionado sobre o ritual, responde: “Muito bom! Todo mundo vai ver o filme, o presidente vai ver o filme, até Jesus Cristo vai ver o filme, porque o ritual maxacali é muito forte, muito bonito, é muito bom mesmo!”. Há uma expectativa de que quanto mais gente ver o filme, mais posibilidades a tradição tem de ser preservada. Essa preservação começaria num lugar fora da própria tradição, começaria na maneira de olhar para ela.

O outro do maxacali tornou-se uma ameaça para a continuidade de seu povo, agora ele acredita que a preservação de sua cultura depende não só da resistência de seu povo, mas da relação com o outro. Provavelmente Zé Prefeito tenha acreditado que, a partir do momento que as pessoas assistissem ao ritual através do vídeo, elas também tomariam parte dele e passariam a ver como um maxacali.

Tatakox cumpre bem sua missão, antes mesmo do conteúdo das imagens, a estética maxacali submete o olhar branco, é mais uma forma que o maxacali encontrou para sobreviver. Enquanto o olhar do outro for preservado, sua essência será mantida e suas tradições tambem poderão ser preservadas.


por Eveline Xavier

BIBLIOGRAFIA:

CAIXETA, Ruben. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Devires - Cinema e Humanidades, v.5. n. 2, jul/dez 2008, p. 98- 125.

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