Dona Thereza interfere na cena para apontar um episódio inédito à equipe de filmagem sobre sua irmã. Sua sobrinha, ateia, contava seguramente sobre uma incorporação de Dona Thereza, que vinha avisar sobre o pai que iria morrer, e a sobrinha aproveitou para fazer pedidos, um emprego, passar de ano no colégio. Dona Thereza ao fundo explica que seu orixá é muito boazinha, ela encaminha as pessoas. Um corte e passamos ao momento em que Dona Thereza chama atenção para o caso de sua irmã, que se perdeu dentro de um banco, por causa de uma pomba gira que ela tinha — sua irmã abusava, ela conta, chegou um ponto de beber a cachaça dela.
Um das cenas mais marcante de Santo Forte (1997), de Eduardo Coutinho, talvez seja essa em que Dona Thereza encena sua relação com entidades para a câmera. A narração de Dona Thereza coloca em cena a sua própria história, sem medo de que sua performance comece a falhar, sua fala balbuciar; fala com a intensidade da máquina que funcionando bem tem o rumor da língua de Barthes (2004:93), e com uma posse do corpo que se mostra na gesticulação e na calma de sua fala pausada. É importante, então, pensar a auto-mise-en-scène criada por cada personagem dirigida ao olhar não só da câmera, mas dos envolvidos em cena. Dona Thereza ao falar sobre o seu orixá ao fundo, enquanto sua sobrinha relembra a incorporação do orixá, é acionada pela fala da sobrinha. Acionada como se por uma vontade de colocar a equipe de filmagem em cena: ela dá mais detalhes sobre a história a que todos estão atentos. Ainda nessa cena, o apontar de Dona Thereza para outra história, coloca em cena mais outra intenção, podemos pensar na contribuição que faz ela para o documentário, ao dizer que ainda não contou essa história, mas também pela ligação que por efeito de montagem é feito: Dona Thereza fala dos perigos dos abusos das entidades, na sequência de sua sobrinha ter falado sobre os pedidos feito às entidades. Pensar a auto-mise-en-scène coloca em evidência o desejo do personagem de se mostrar, e em como performar na cena.
A essa cena em que Dona Thereza se apropria do espaço filmado, dirigindo as palavras a seu sabor, contrapomos aos outros personagens que vemos retratados em suas casas em um enquadramento quase clássico em que desfiam suas histórias religiosas eles mesmos, com um incentivo de interlocução que Coutinho assume sem muito interferir. Às perguntas de Coutinho não respondem secamente, as suas histórias são as respostas, como se usassem suas vidas como exemplo para as respostas.
Entre as primeiras pergunta que primeiro se coloca é por que fazer um filme sobre experiências religiosas? O que elas poderiam nos dizer? Essa pergunta torna-se importante para pensar Santo Forte (1997), de Eduardo Coutinho, pelo desejo de não cairmos em uma valoração das experiências dos sujeitos filmados em termos pouco produtivos, como se quiséssemos colocá-los sob um princípio de veracidade ou validade. A montagem de Santo Forte já nos evoca essa questão. Entre momentos de outros personagens, Carla que conta sobre as surras de santo, a imediata menção de que o acontecimento ocorreu em sua sala, há um corte na cena, e é mostrada a sala em silêncio, e a menção da pomba-gira, um outro corte e vemos uma imagem modelada de uma pomba-gira. A imagem que vemos nesses cortes são imagens que comprovam pouca coisa: o que pode uma imagem de uma entidade, ou um espaço filmado nos comprovar além do que já vemos?
A essas imagens que dizem pouco, que dissecam os espaços e mostram uma cristalização das entidades em uma matéria, temos no entanto experiências que são transformadas nas narrativas em formas de ver o mundo. “O olho está no limite da imagem. O olhar é, ele também, uma produção.” — nos diz Comolli (2008:98). A produção de um olhar para Carla passa por sua experiência com a religiosidade — ela conta, entre outros ensinamentos, que se alguém sai da casa para pedir o mal para outra, não é a entidade que é a ruim, é a pessoa, pois é ela que pede o mal para alguém.
Ao passar da valoração das histórias em termos de validade, podemos constituir espaços comuns nessas histórias, mesmo se somos nós de qualquer crença ou céticos. Pois mesmo que fantásticas essas histórias contadas pelos personagens de Santo Forte não estão em outro lugar que não este mundo em que coabitamos. Assim como o título que dá às notas sobre Santo Forte que dá Cláudia Mesquita (2008), “Inventar para Sugerir”, se acreditamos ou não, podemos antes de tudo procurar nessas histórias os encontros que nos levariam a ver mais que alento para a dura realidade vivida pelos habitantes da Vila Parque da Cidade, mas antes experiências do mundo no nosso mundo.
REFERÊNCIAS
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. IN: ______. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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