quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A ética que desconstrói a mise-en-scenè

O documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro – Auto-retratos” (2003), dirigido por Paulo Sacramento, retrata o convívio dentro da Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero, o Carandiru. O filme conta com a participação dos próprios detentos que aprenderam como manusear a câmera depois da realização de um workshop que aconteceu dentro da penitenciária.

A penitenciária funciona como uma “mini-sociedade” e tem exemplos do seu cotidiano. Desde os presos que trabalham, freqüentam a academia, participam dos eventos esportivos, como também existe uma forte presença da religião e suas diferentes formas e também a contínua presença do crime, da venda de drogas, o que contrapõe o discurso inicial, no filme e dos responsáveis pela manutenção dos presos e do próprio discurso da existência de uma cadeia: reeducação. O documentário mostra como o sistema carcerário é ineficiente e dificilmente é capaz de recuperar aqueles que estão presos.

Sacramento dá visibilidade ao invisível, considerando que os presos são comumente estereotipados. Além de que a participação dos próprios presos é uma alternativa de tornar o documentário mais “ético”, da mesma maneira que verídico, uma vez que em uma determinada cena o próprio presidiário constrói um “roteiro” do que ele pretendia gravar, e dessa maneira ele também é responsável pelo enquadramento, sem levar em consideração a montagem do filme e as decisões tomadas pelo responsável pela montagem.

A participação dos presos é um elemento importante do filme, porque dessa maneira temos a impressão de que o que nos é transmitido é de realmente verdade, que a partir do momento em que a câmera está dentro da cela, e quem tem o seu domínio é um personagem-diretor, o filme parte para outra “dimensão”, em que toda a verdade, sem alterações se dá ali, sem pré-orientações em relação a discursos e posicionamentos.

Acontece que, como tratado por Jean-Louis Comolli, em um documentário muitas vezes a “mise-en-scène documentária” se faz presente, uma vez que os presos já tem conhecimento sobre o que é ser filmado, sobre a exibição do que é filmado, e dessa maneira representam, ainda que a si mesmos.

“Aquele que filmamos tem uma idéia da coisa, mesmo que nunca tenha sido filmado. Ele a representa para si, prepara-se de acordo com o que imagina ou acredita saber dela.” (COMOLLI, 2008: 53)

Os presos “representam a si mesmos” de maneira sutil, como o ex-lutador, que sonha voltar a lutar, e que ali, nos treinos, na preparação física, mostra para quem quiser ver, que ele está se preparando para caso tenham interesse em tê-lo de volta como lutador. O momento em que ele deixa de ser “o lutador”, que talvez deixe de representar, é quando lhe é concedido o direito de passar uns dias fora da prisão e ali nós observamos a presença do homem que está preso e se emociona com a liberdade, sem máscaras.

“Ao invés de avançar, de partir decididamente para a representação, ela deve permanecer atenta, à espera do Outro, sabendo que, quando ele chegar, será preciso dispor de meios para confrontar e des-naturalizar a representação que envolve e o sufoca, que faz de seu Rosto uma máscara que o torna indiferente, indistinto, dissolvendo-o em meio aos milhares de Outros indiferenciados que povoam o espaço social.” (GUIMARÃES, 2007: 2)

Quando Guimarães destaca que são necessários “meios” para confrontar a representação, um “meio”, ou recurso, utilizado por Sacramento é exatamente a participação dos presos no documentário para aproximá-lo do que é “real” e, mais ainda, tornar o filme mais ético. O preso, ao ser filmado por outro preso, assume uma postura mais relaxada que quando é filmado por alguém da equipe de Sacramento.

“Quando se fala de ética do documentário, a principal preocupação reside justamente no fato de que o filme começa por ser um investimento de poder, dono de meios discursivos e imaginéticos que assujeitam aquele que é filmado, situado de início, em uma posição que lhe permite bem menos desenvoltura do que àquele que filma.” (GUIMARÃES, 2007: 4)

Dessa maneira, a transmissão da câmera para o preso, assume um significado muito maior que o de “co-participação” ou “co-criação”. O preso está “confortável” com o que foi criado. A responsabilidade pelo documentário não é unicamente do diretor, se torna responsabilidade de todos os presos-participantes, que quando filmados por outros presos, quando o poder da câmera e o “controle” é transmitido a eles, a mise-em-scenè documentária se retrai.

GUIMARÃES, César; LIMA, Cristiane. A ética do documentário: o Rosto e os outros. São Paulo, 2007.

COMOLLI, Jean-Louis. Aqueles que filmamos: notas sobra a mise-en-scenè documentário. In: Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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