quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Primeiro ensaio - Boca de lixo, de Eduardo Coutinho.

O documentário "Boca de lixo" tem início com a imagem de animais se alimentando no lixo, corvos e porcos. Talvez essa menção contribua para o sentimento de animalização do homem que se origina da cena seguinte, onde o caminhão começa a despejar os resíduos, e os homens se atracam por ali para conseguirem as melhores porções, em uma disputa acirrada pelo “novo lixo”. Os cineastas, por sua vez, se misturam àquela situação, na tentativa de imergirem o quanto fosse possível naquela realidade.

A princípio, os trabalhadores fugiam da câmera, desviavam seus rostos, escapando de serem filmados. Por estranhamento, vergonha ou timidez. Aos poucos, alguns se arriscam, começando pelos jovens, que passam a indagar o porquê daquela filmagem. O cineasta responde que as câmeras estavam ali para testemunhar como era a vida ali. O garoto, ao receber a voz e vez que a câmera concede, exprime então o que gostaria que fosse ouvido, ou melhor, por quem gostaria de ser ouvido: o então presidente Fernando Collor.

Ao serem indagados sobre o trabalho realizado ali na “boca de lixo”, muitos discursos divergem. Um ponto, no entanto, é recorrente: a declaração de que não estão roubando. Pode-se concluir daí o desejo dessas pessoas de não serem marginalizadas, de serem vistas como trabalhadoras que são, exercendo funções como em todos os outros trabalhos do mundo. Em outros aspectos, no entanto, como foi dito, as posições não coincidem. Há quem diga que enquanto houver lixo, lá estará sua fonte de renda. Outros o vêem como um trabalho temporário, como o marido de Lúcia, que, despedido durante as filmagens do longa, recorre ao lixo para complementar a renda da casa naquele período de desemprego. Algumas mulheres consideram o trabalho no lixo muito melhor do que trabalhar em casa de família, “servindo as madames”, ganhando um salário mínimo. Cícera, por exemplo, destaca a autonomia que o trabalho no lixo concede. O serviço ali é também visto como alternativa para aqueles que não procuram outra espécie de emprego por “terem preguiça”, por quererem “comer fácil”, o que é possibilitado pela presença de alimentos reaproveitáveis nos resíduos despejados.

Há quem encha o peito de orgulho por trabalhar e ter sido criada ali. Lúcia destaca o caráter da união na boca de lixo, onde todos interagem e há um clima amistoso, comparado ao que ela viveu no cultivo da cana no Paraná. Lúcia ressalta ainda que todos são diferentes, dentro e fora do lixo. Em casa, ela cuida das duas filhas e tem outros tipos de conduta, que contrastam com a extroversão manifestada em seu ambiente de trabalho.

Há visões otimistas, como a Nirinha, que tem a boca de lixo como fonte de renda em níveis mais amplos que os demais catadores. De acordo com ela, o material por ela arrecadado e depois vendido tem o preço do mercado comum, e ela chega a arrecadar até 4 toneladas por quinzena. Outras, no entanto, alegam que “bom não é”, mas é de onde se é possível tirar dinheiro naquele momento. A mesma moça que relata isso, destaca que preferia fazer serviços domésticos, onde trabalharia limpa e faria refeições adequadas, ao contrário de apenas jantar, como acontece com a vida no lixo. Contrastando com esse sentimento de impotência, surge a personagem da Cícera, uma senhora de extremo bom humor e simplicidade. Ela exala desprendimento, sem medo da câmera, simplesmente porque não está roubando e, portanto, não tem porque se envergonhar. Sua neta aparece também como personagem envolvente, pois é uma jovem que mantém o sonho de ser cantora sertaneja, e não deixa o sorriso morrer em seus lábios.

Pelas filmagens, observam-se diferentes atividades desenvolvidas no lixão, como o futebol entre os garotos, a leitura de jornais, o jogo de baralho, o descanso.

Em determinado momento, surge uma denúncia: o despejo do lixo hospitalar de forma inadequada. De acordo com uma das trabalhadoras, até bebês recém-nascidos já foram encontrados. Seu pé se achava cortado por uma agulha hospitalar. Imaginemos as implicâncias de uma exposição como essa. Esta mulher declarou considerar o trabalho no lixo perigoso, e apesar de possibilitar o sustento de seus filhos, ela não levaria eles àquela situação.
Surge na trama o Senhor Enock, homem de aparência sábia, daqueles carregados pela experiência da vida. Ao ser indagado sobre o apelido de “Papai Noel”, ele destaca esse aspecto, considerando que era correto mesmo que ele fosse tido como o pai daquele lugar. O senhor reconhece o perigo do trabalho, onde muitos podem adoecer – mas alega já ter trabalhado em inúmeros lixões pelo Brasil. Assim como em outras inúmeras atividades, do Acre ao Rio Grande do Sul, passando pelo Amapá, por São Paulo. O sentimento presente, assim como em outros momentos, é o de conformidade – o lixo é o que aquelas pessoas de fato têm. Seu Enock define o lixo como fim e começo – fim para quem o descarta, começo para quem o reencontra e dele depende. Sua casa foi mobiliada parte pelo que foi encontrado no lixo – um pôster de ninjas, um relógio na parede. “O que não serve pro rico, pode servir pro pobre”, foi dito por alguma daquelas bocas famintas.

De um lado, o Senhor Enock, sua idade e experiência. De outro, um jovem rapaz, trabalhando no lixo há dois dias, após ser demitido de seu emprego de mecânico. Ao ser indagado o porquê de não ter vergonha alguma perante as câmeras, o jovem não hesita: é humano, brasileiro e livre, e tem o direito de dizer o que quer que pense.

Jurema aparece como última personagem “destacada” pelo documentário. Sua primeira frase já diz muito sobre sua personalidade: ela diz ter nascido ali, no meio de um monte de papelão, ter sido “largada ali”, e por ali ter ficado. Jurema é uma mulher decidida, bem resolvida. Não quer que os catadores de lixo sejam filmados como porcos, passem a impressão de que comem lavagem. Por isso a resistência em se deixar entrevistar. Jurema quer deixar claro que parte do lixo manejado é para extração de material reciclável para venda. Outra porção, carregada em outros caminhões, é que possui comida, que é parte direcionada aos porcos – que grande parte dos trabalhadores possui – e outra parte, a que estiver mais bem conservada, entre frutas e legumes, vira alimentação. Com sete filhos, Jurema diz querer quantos mais Deus quisesse dar a ela. E que não, não era difícil criá-los. Afinal, Deus ajuda. Os filhos passaram a impressão de que se criavam sozinhos. A mãe de Jurema se adiantou dizendo que não ajudava a cuidar: afinal, teve doze e nenhum auxílio.

Destaco, de forma pessoal, a presença dos casais na produção. Dona Cícera mora há nove anos com Antônio, que não é o avô de sua neta. Sua neta aparece ao lado do namorado. Lúcia mora e tem suas duas filhas com seu namorado de infância, estudaram juntos, capinaram juntos, e são companheiros que dividem as responsabilidades de manter a casa. Senhor Enock, o Barbudo, é casado com sua paraibana. Jurema tem sete crianças sorridentes, nascidas de um romance que se originou na boca de lixo, passou para um café e em seguida para a cama, “vapt-vupt”, nas palavras de Jurema. E quanto mais filhos viessem, mais amor e emoção haveria, acabando com qualquer briga que houvesse entre o casal.

O documentário traça uma linha do início ao fim, mostrando as fotografias dos personagens a eles próprios. Muitos poderiam estar vendo seus rostos impressos pela primeira vez. As faces vão da infância à velhice, olhos profundos, quase sorrisos, ausência de dentes, excesso de rugas, mãos fortes, peles fortes, corpos firmes. São as pessoas que constroem suas vidas no lixo, e nele são construídas.

por Camila Braga

Stolat: quando o roteiro foge ao controle

“Filmar sem compreender, conseqüentemente, filmar para compreender apesar de tudo, apesar da barreira lingüística.” (COMOLLI, Jean-Louis. 2004. p.158)

Quando três papuásios, estudantes de cinema, decidiram fazer um filme que retratasse idosos na capital francesa e criaram esse roteiro, certamente surgiu uma expectativa de que, ainda que o filme tomasse novas direções, o enquadramento principal do filme seria esse, o que não aconteceu, ou aconteceu.

Nas ruas de Paris, as reações dos nativos a três indivíduos que não falavam a língua e que tinham a expectativa de conseguirem personagens para seu filme, poderia mostrar a principal dificuldade futuramente enfrentada pelos estudantes, porém, com a continuação do filme, a barreira lingüística não foi um diferencial negativo no filme, de alguma forma, foi um fator importante para a própria construção do filme, assim como do relacionamento entre o personagem e os cineastas.

O roteiro de um documentário é, sem dúvidas, diferente de um roteiro de um filme voltado para o espetáculo, ele não é construído por si só, sua construção é coletiva, os participantes do filme, todos eles, são de certa forma, colaboradores, acrescentando e reduzindo. Essa construção do roteiro é vista por Comolli como a força do cinema documentário. “Eu falo, então, de um “roteiro coletivo”, porque as situações, os acontecimentos, as repercussões produzidas na “realidade” (a realidade filmada) são inimagináveis no escritório de um roteirista e só podem acontecer porque elas implicam pessoas reais em estratégias e em experiências reais.” P.162.

A fuga do roteiro é um ponto determinante em Stolat, e em segundo plano a barreira lingüística que não gera grandes dificuldades de relacionamento ou na produção e construção do documentário.

O personagem, o idoso, não vivia em Paris, sua rotina se dava no interior da França, sua origem é polonesa, e como pretendia o filme, ele vive a sua vida, a sua rotina, com seu cachorro, com seus pássaros, sem muita preocupação com o fato de estar sendo filmado, sem dar importância ao registro. Então, aonde se encontra a fuga do roteiro? No personagem integrando os cineastas a sua rotina, tornando eles parte não apenas da produção do documentário, como também personagens secundários. O idoso polonês é um colaborador do roteiro inicial, e os cineastas que planejaram o roteiro são colaboradores desse novo roteiro, agora, por fazerem parte do documentário.

A participação dos cineastas como personagens é parte fundamental do rumo que o filme tomou, além da rotina do idoso, o relacionamento entre cineastas e personagem, que seria dificultado por não falarem a mesma língua, somam a idéia inicial, e o filme deixa de ser apenas a rotina de um idoso e passa a ser também sobre o relacionamento entre pessoas que não se conheciam, não falam a mesma língua, e como esse relacionamento se intensifica e o espectador é capaz de perceber a afinidade entre os personagens.

“O gesto de filmar tornou-se o lugar de um conflito ou de uma tensão que não é mais somente uma questão para os espectadores, mas torna-se cada vez mais uma questão para os realizadores.” P.168

O título do documentário “Stolat” é um expressão/música polonesa que da mesma que equivale a uma música cantada em aniversários, é uma expressão que deseja coisas boas, saúde e longa vida. A cena em que a música é cantada pelo idoso que é seguido pelos papuásios, sem saberem literalmente o que estava sendo cantado, mostra que a linguagem se dá tanto pela fala quanto pelos gestos e isso pode ser percebido pelo próprio espectador.

“No cinema, pela escuta posta em prática na filmagem ou pela escuta do espectador durante a sessão, a palavra filmada torna-se ação: ação falada. Não se trata mais de conversação, mas de intervenção, de gesto, de força em ato.” p.165

“Os filmes documentários não são apenas “abertos para o mundo”: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, concomitantemente, os funda.” (COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. p.170)

Stolat é um documentário em que o espectador pode acompanhar o roteiro que foi programado, a construção coletiva de um novo roteiro, assim como, a adição de novos personagens e de uma nova história, ainda que o enquadramento principal do filme, o relacionamento entre idoso e cineastas ou a rotina do idoso, seja indefinido, ou definido pelo próprio espectador.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

COMOLLI, CAIXETA, MESQUITA. Não pensar o outro, mas pensar que o outro me pensa.

Entrevista. Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004.

Boca de lixo – o outro dos outros. VERSÃO CORRIGIDA

“O acontecimento do documentário para mim é o encontro entre os dois lados: entre eu e o outro, entre o outro e eu. Isso é essencial.” 
Eduardo Coutinho. 
Entrevista à Sinopse – Revista de cinema, n.3.


Boca de lixo (1992), de Eduardo Coutinho, é um documentário em que a provocação pode ser considerada uma palavra chave em alguns momentos. O filme mostra o cotidiano dos catadores de lixo no lixão de São Gonçalo, Niterói, Rio de Janeiro. Nas primeiras imagens o ambiente é apresentado sem as pessoas, e a sensação de mal estar já fica latente no espectador. Na sequência seguinte, os catadores surgem na tela falando alto e revirando o lixo recém chegado de um caminhão. Nas próximas, a equipe do documentário que chega com a câmera ligada no lixão encontra nas reações das pessoas que fogem e fazem gestos para que eles fossem embora, questionamentos e desconfiança.

Logo nos minutos iniciais já é possível notar as várias instâncias da provocação: do espectador que se defronta com imagens repugnantes e rememora pelo senso comum a sensação de pena com quem ali trabalha; dos catadores que fogem ou tapam o rosto, intimidados pela câmera. E do próprio documentarista que é recebido de forma pouco amistosa, com perguntas nitidamente provocativas. E também ouve muitas vezes respostas defensivas, como se soubessem tipificados, talvez por saberem a forma em que “o indivíduo em seu esplendor e miséria, torna-se, por meio da publicidade e da erotização crescente das mensagens midiáticas, o grande negócio do espetáculo.” (COMOLLI, 2007: 129)

Os xerox que são mostrados para que eles se reconheçam já denotam que o que o filme vai mostrar é uma imagem deles mesmo. Passado esse primeiro momento em que se dá o approach, as pessoas ganham nomes e são singularizadas: tornam-se personagens Nirinha, Lúcia, Cícera, Enock e Jurema. Em suas casas elas ganham a chance de se mostrarem. A fronteira entre o que é encenação e o que é a vida deles mesmo fica muito pouco delimitada. 

Coutinho, permanentemente uma voz fora do quadro, por meio da entrevista faz perguntas que provocam/incitam as pessoas a falarem, e , quando o processo de fala dos personagens se inicia, a câmera escuta. “Todas as condições estão dadas. Elas se encarregam da mise-en-scène, a tornam pesada ou leve, a realizam com suas insistências, com suas maneiras de dar sinais” (COMOLLI, 2008: 56).  Como no momento em que a filha de Cícera começa a cantar, encarnando a personagem da cantora sertaneja – um sonho para ela –, e faz uso dos trejeitos dos cantores mesmo, balançando o corpo e fechando os olhos, por exemplo. 

O fato de escutar propicia um verdadeiro descortinamento dos sujeitos. Alguns trabalhadores tentam fugir do estereótipo da mídia. Jurema, por exemplo, explica o motivo pelo qual, no primeiro encontro, ela mentiu falando que os catadores não comem coisas encontradas no lixão (mentira flagrada em alguns clipes anteriores que aparecem na montagem). Ela não queria que a representação dos catadores famélicos que engolem rápido o que encontram para comer fosse passada, imagem que reduziria muito o que eles são de verdade. Quando percebem que são ouvidos, se sentem à vontade para falar até de assuntos pessoais, como no caso de Jurema que conta com uma naturalidade impactante como conheceu o seu marido, descrevendo até sua primeira relação sexual com ele: “foi rápido, foi bom, foi ótimo”.

O processo de realização do filme é mostrado, a câmera e a equipe até aparecem em cena, bem como a hesitação na construção das falas dos personagens. Coutinho adota uma postura ética que não faz pré-julgamentos e aceita de forma não resignada o mundo que se apresenta a ele.  A realidade não sofre mascaramento, nem manipulação, a miséria brasileira na sua forma chocante ou não é apresentada ao espectador no documentário.


Por João Paulo Rabelo.

Referências:

Boca de lixo, Eduardo Coutinho, 1992, 50 min.

COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: O comum e a experiência da linguagem. GUIMARÃES, C.; OTTE G; SELDLMAYER, S (orgs). Belo Horizonte, UFMG, 2007.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

Stolat!

Três homens negros conversam à margem de um rio em uma língua ou sotaque indecifráveis, estão em uma cidade movimentada, decidindo alguma coisa. Parecem confortáveis, ainda que conscientes de que façam uma imagem frente à câmera. Aos poucos o idioma inglês aparece e a legenda também.

Em Stolat, o tempo em que essa filmagem se passa não é meu, não reconheço a língua ou aqueles personagens, desconheço por que eles precisam fazer um filme sobre idosos na frança sem falar francês. No entanto, as dificuldades encontradas para achar qualquer personagem ante a desconfiança e antipatia do ambiente em que estão trazem muito rapidamente o espectador para o lado desses primeiros outros que aparecem na tela: Pengau Nengo, Martin Maden e Bike Johnston – os próprios realizadores do filme.

Talvez Stolat conquiste a nossa atenção para a questão do “ser outro” já nessas sequências em que os jovens papuásios simplesmente não conseguem se comunicar por uma barreira linguística e, sobretudo, cultural. Quando finalmente aparece um jovem rapaz que domina o inglês e promete apresentá-los a um avó que pode “se interessar pelo trabalho”, o filme muda de ritmo e de proposta, e, sem muitas explicações mas com muita delicadeza, nos insere no mundo desse novo e principal personagem do filme.

O nome do avô aparece pela primeira e última vez na primeira narração feita pelo jovem neto. Uma locução em off contextualiza um pouco as imagens que vemos : um velho senhor que trabalha sozinho em uma área rural do interior da frança. A locução fala de um idoso polonês com uma história difícil: ex - combatente de guerra, perdeu a esposa há pouco tempo e desde então vive e sobrevive sozinho. As imagens que se seguem, entretanto, se poupam de uma dramaticidade ou esteriotipação que poderiam dirigir a construção daquele personagem. Elas não enquadram as marcas da velhice, da solidão ou das ferrugens físicas ou psicológicas que idade pode gerar. O que vemos é um senhor que sorri, alimenta e trata com carinho seus animais , vai ao mercado, e se sente muito à vontade diante daquela experiência cinematográfica maluca. Após algumas cenas em que os papuásios aparecem à mesa sendo servidos pelo seu personagem, chegamos à cena que em finalmente entendemos o nome do filme: o velho polonês ensina a palavra “Stolat” que caracteriza o brinde com vodka.

Na verdade, “Stolat” gira em torno da pequena cozinha da casa desse senhor e da relação desenvolvida por ele com os que o filmam. Acontecimento fílmico, realidade ficcional ou ficcionalização da realidade,não é possível separar muito claramente o que define o curta. A experiência não é muito explicada, não sabemos exatamente em que condições aquele período de convivência se deu, mas, seus resultados estão sim em sua materialidade fílmica. As barreiras entre quem filma e quem é filmado perdem importância a partir do momento em que ambos criam algo em comum, mesmo sem falar a mesma língua: eles se põem em relação.

O comentário feito em off por um dos papuásios é um testemunho das vias que as filmagens tomaram : “ Não pensamos nele como um idoso com quem trabalhamos, mas como um exemplo do que as pessoas deveriam estar fazendo”. O papuásio comenta sobre a veracidade com que aquele senhor os colocou em sua rotina e como isso modificou o olhar de quem filmava. Naturalmente isso modifica também as possibilidades de olhar dos espectadores.

Pensando um pouco sobre o Estilo Varan (Experiência de Jean Rouge que formou os jovens papuásios como cineastas) é impossível não pensar no papel que o imprevisto tem em Stolat, e na sensibilidade apresentada para lidar com ele. A possibilidade de se expor ao real, construir uma relação com uma alteridade a priori inacessível pela língua, e a partir daí colocá-lo em cena, traz a ética do filme: o resultado não é somente fruto de uma habilidade estética mas de um posicionamento diferenciado diante do outro.

Se a primeira dificuldade dos papuásios em Stolat foi se fazerem entendidos, na casa de seu personagem principal a ausência de compatibilidade línguística se torna a chave para deixar com que aquele senhor também criasse sua auto misce - en - scène . Sorte deles, aí está toda a beleza do filme.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. In: ______. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Azougue Editorial, 2

Desenha-me um carneiro? - v2

Débora em seu Salão fazendo as unhas de uma cliente enquanto conversa com uma criança sem entendê-la muito bem, fala como quem quer dizer algo de doce. Fábio trabalha todos os dias em vários empregos, no restaurante em que trabalha como garçon para por um momento de descanso e observa o horizonte, parece ter o desejo de um futuro melhor. Cauan perambula pela casa, sem falar, pois suas conversas com os familiares o eludem de qualquer fala de iniciativa própria. E Pirambu que pouco conversa, remexe papéis sentado em uma cadeira perto da janela de sua casa, a paisagem e um vaso de flores sobre a mesa aliviam a cena.

Diante de vidas tão comuns, Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, parece querer nos mostrar algum segredo. É que a imagem que nos é mostrada parece escapar a qualquer moldura a que possamos tentar enquadrar. O sentido não pega. Os quatro personagens também não se enquadram, eles parecem resistir a qualquer apresentação final e o filme não cessa de nos apresentá-los.

Ao ver Cauan brincar com um balão debaixo de uma mesa ou observar Débora depilando a barba de um cliente parece que já sabemos que essas imagens não querer nos dizer nada. É somente por um arrombamento de sentido que podemos fazê-las nos dizer, pois a relação da câmera com os personagens, apesar de transparente, tem opacidade no entrelaçar das vidas que nos são mostradas: são vários fragmentos de mundo que nos aparecem. Brasília Formosa não se trata de um naturalismo que pretende mostrar a vida como ela é em sua totalidade. O que vemos são partes do cotidiano juntas, mas também desligadas, que por acaso ou pelo partilhamento do lugar em que se passam as cenas, o bairro Brasília Teimosa, conectam-se — é possível lembrar do encontro de Débora, candidata a uma vaga do Big Brother, com Fábio que o contrata para fazer seu vídeo-inscrição.

Ainda que fragmentado, a impressão que saímos do filme é de uma vista panorâmica dessas vidas que nos convida a nos investir de uma outra maneira. Ver Brasília Formosa não é só ser conduzido pelo filme, mas buscar nos intervalos, nas elipses que não são dados a ver, espaços que nos caibam. Essas imagens parecem impor esse lugar que Sontag defende para o espectador — "Contra a Interpretação" (1987:11) é um projeto que se recusa a buscar um conteúdo na arte. Por uma tradição que vê a arte como uma imitação da realidade, é aquilo que se encontra por detrás da forma, que está por trás daquilo a que representa, que se pode chamar de arte — a forma seria só um acessório para o conteúdo. Esse processo consciente de interpretação, para Sontag, constitui um ato de esvaziamento do mundo, que despotencializa a arte por dar valor somente a um conceito que toda forma guarda. Interpretar é arrombar o sentido das obras por insatisfação, como se quisesse substitui-las por outra coisa. E por conseqüência, esse ato só serviria para transformar "o mundo nesse mundo" (1987:16). Como se existisse algum outro.

Para escapar a esse impulso exasperado de interpretar, as imagens devem parecer tão unificadas e limpas, e sua intenção tão transparente, que elas são exatamente o que são. E em Avenida Brasília Formosa é a convivência com essas vidas, com esses corpos, que faz haver filme (COMOLLI, 2008:169). Os planos duram e ao final de cada um deles é a própria duração que lhes dá valor. No filme, um plano mais outro, quase não se somam, a fragmentação das histórias não deixa quase nada para se juntar. O filme se constrói em meio a essa desconstrução.

E na cena, os personagens, como na perspectiva de César Guimarães (2010:188), não se destacam por nada de especial que os delimita, pois o ordinário aqui "não o é por contraste com algum extraordinário; não é o momento nulo que esperaria o 'momento maravilhoso' para que este lhe dê um sentido ou o suprima ou o suspenda" (BLANCHOT apud GUIMARÃES, 2010:182). Os personagens apresentados, por mais faces que tentemos delimitá-los, eles não comportam descrições adjetivas, mas somente descrições que são também um movimento, suas relações com objetos e pessoas em seu cotidiano.

E é por esses dois movimentos (a duração e a cena) que o filme parece ganhar corpo: a própria duração que engendra o dispêndio, um gasto por nada. Gasto em que o espectador se empenha por desejo, primeiro, talvez, por essas imagens desenquadradas constituírem paisagens completamente habitáveis, que em nada parecem excluir o espectador da cena. Pois ele mesmo deve tomar parte na cena, nesse mecanismo tão potente do cinema, a projeção.

Nesse ritual ao qual sempre retornamos, por uma insistência das partes — espectador e filme — pode acontecer a insistência que um Pequeno Príncipe aprende com uma Raposa. E ele, o principezinho, como que portador de parte de um segredo, insiste, apesar dos desentendimentos da linguagem, a pedir a um desconhecido em um gesto banal e ao mesmo tempo isento de sentido: "Desenha-me um carneiro?".

REFERÊNCIAS 
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. In: ______. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
GUIMARÃES, César. Comum, ordinário, popular: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Azougue Editorial, 2010.
DE SAINT-EXUPERY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1996.

Eu, um negro que representa - 2a versão


Eu, um negro que representa.


O filme Eu, um negro, produzido por Jean Rouch na Costa do Marfim em 1957, nos coloca à ver as imagens gravadas pelo cineasta na cidade de Abidjan retratando a vida de jovens desempregados que vivem de biscates nas ruas da cidade. O desemprego nos centros urbanos africanos, aparece como fruto do êxodo rural desta época em decorrência da colonização imperialista. As imagens percorrem o dia a dia dos jovens por Treichville, a parte pobre da cidade onde moram, e nos interpela de uma maneira intensa na medida em que, aceitando a proposta de Rouch, os atores (não atores na verdade, sem preparação cênica, pessoas “comuns” convidadas por Rouch a integrar o filme sobre suas próprias vidas) se apresentam com codinomes, nomes de atores ou personagens famosos, ora explicando quem realmente são e ora entrando no papel do personagem escolhido.

Tal narrativa nos chega através de um fator técnico que configura toda a forma com que o filme aparece: o áudio, não sendo possível a gravação em som direto, é captado em off posteriormente, com os atores assistindo as imagens gravadas por Rouch e comentando (com participação contextualizante do cineasta no início e em alguns trechos) o desenrolar dos acontecimentos filmados, oscilando entre o discurso documental e o enredamento pela ficção, criando narrativas sobre as aventuras dos personagens que estão “representando”.

O filme, portanto, coloca o espectador na posição de discernimento e conflito entre o documentário e a ficção, que se misturam a cada momento do filme. As imagens (claro, considerando a articulação com o áudio), podem ser colocadas em dois blocos: as imagens “ordinárias”, captadas na rua, no dia a dia dos atores, onde trabalham, comem, descansam, perambulam e as que são produzidas com elementos cinematográficos de montagem, preparação, ensaio, continuing e jogo de câmeras - como, por exemplo, a briga com o italiano em um momento avançado do filme, onde se percebe claramente tais elementos. Blocos estes que se articulam no desenrolar do filme, formando um amálgama de etno-ficção como diz o próprio cineasta, onde a ficção, toda articulada pelos próprios atores sobre as suas vidas, passa a documentar também uma articulação e construção subjetiva em cima da dura realidade de suas vidas. Ao mesmo tempo em que Oumarou Ganda reclama da falta de emprego e da pobreza que enfrentam em Abdijan, se coloca com o codinome “Edward G. Robinson” (ator famoso no início do século XX) onde representa quem gostaria de ser.

Da tensão colocada por Rouch, então, emana um produto que, assim como o gesto de Vincent Carelli no projeto Video nas Aldeias, coloca à disposição do sujeito filmado a possibilidade de produzir sua representação. Misto de intenção antropológica e de militância contra a distorção que uma montagem executada com objetivo ficcional pode colocar na imagem que se tem de um povo – aqui, principalmente na figura do Negro africano, em geral marginalizado na comunicação em poder do colonizador –, o filme acontece através de um gesto que confere a chance de escapar à imagem produzida de forma recortada e montada ideologicamente, onde o outro dura em frente à câmera, se mostra à vontade no espaço e no tempo do filme.

A vida organizada dentro de um universo simbólico capitalista, convivendo com os citados meios, frui a todo tempo da informação segmentada, efêmera e feita de imagens com natureza inversa às de duração. Ao contrário destas, alicerçadas por maior quantidade de pontos de apoio ligados com coesão à realidade fora da tela, elas geram uma percepção distorcida e tensionada das relações entre espaço e tempo, possível e impossível. Por outro lado, o registro documental, com devido respeito à duração das imagens, nos dá a abertura necessária para o que Comolli chamou de “o risco do real”, que passa a nortear o caminho traçado pelas imagens, guiadas pela possibilidade do acaso, pela imanência dos acontecimentos que caminham nas trilhas incertas do espaço-tempo verdadeiro, constituído no acaso.

As imagens chamadas documentais então, se colocam em lugar de oposição às de ficção que por sua vez convivem mais próximas do indivíduo na vida moderna cotidiana, imersa nos meios de comunicação. Trazendo pedaços da realidade capturados coesamente e dando espaço para a ambiguidade, elas desarticulam a intervenção irreal das imagens sem duração e se mostram tão diferentes delas que então podem ser tidas por ficção.

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“Guerra à informação. Documentário: o contrário da informação, das informações; o reino da ambigüidade; o território das metamorfoses; o domínio da narrativa. É preciso recomeçar daí. É por aí que o documentário tem muito a ver com a ficção. No mais positivo dos sentidos. Ficção como força que nos faz sair dos eixos. Ficção como porta que nos faz passar para o outro lado do espelho narcísico no qual os meios de comunicação nos aprisionam.” (COMOLLI, 2008: 127)


Aqui, porém, não bastando a intenção, temos que nos recordar que Rouch é francês, visivelmente um “gringo”, circulando por Abdijan com uma câmera no meio dos africanos (instrumento mais incomum ainda naquela época). A própria possibilidade de aparecer no filme desse gringo, traz para os jovens retratados a tentação de expor sua subjetividade em leituras inventadas sobre suas vidas. Por outro lado, a colocação de pessoas na frente das câmeras articula outras representações e significados, expondo o fator de realidade de quem são estes jovens, o que esperam da vida e como gostariam de ser vistos ou mesmo de viver. Ao aparecer no filme, eles se tornam inevitavelmente múltiplos personagens, tanto os criados por Rouch e por eles mesmos nas narrações quanto as figuras reais que são e representam, africanos que vivem em Abdijan, passam dificuldades e estão sendo retratados em um filme de um francês sobre os africanos.


“É difícil para o documentário filmar seres humanos sem cair na tentação e rapidamente transformá-los em personagens de filme. (COMOLLI, 2008: 130).


Na faixa de áudio, podemos sentir uma extrema descontração, no momento em que assistem as imagens e passam a construir o corpo narrativo do filme juntos, brincando também com a situação. O fator da duração aparece no áudio, muito mais que na câmera e através disso podemos sentir a subjetividade de cada um aflorando na concessão de voz que lhes é dada. Portanto, nesta descontração é que aflora o real sentido documental do filme, quando em um ambiente descontraído e olhando para imagens de si próprio, eles dão passos para fora do espetáculo criado e falam livremente, como o fariam em seu papo cotidiano sobre os problemas que vivem e as aspirações de vida, como seres humanos comuns que são. Podemos perceber acontecendo neste momento, a documentação de uma ficção, gerada em contraste ao objeto documental gravado pela câmera. Documental no sentido em que escapa à imagem tradicionalmente feita ficção ideológica, historicamente prejudicial aos negros africanos.

Por Daniel Ferreira

Stolat! Stolat! (SEGUNDA VERSÃO)

O inesperado, o incontrolável, a surpresa. O documentário, segundo Comolli (2008), trabalha, ou deveria trabalhar, com tais substantivos. Frente à constante roteirização da vida, promovida por gêneros já consagrados que povoam a programação diária das televisões de diferentes países, o cinema e, mais especificamente o documentário, seria o suspiro daquilo que ainda permanece inenarrável, ou que pelo menos escapa ao ímpeto controlador das coisas do mundo. Ou seja, a prática documentária se relaciona com aquilo que escapa, que transborda os limites dos padrões e roteiros, apresenta lacunas ou novos contornos. "O não-controle do documentário surge como a condição de invenção. Dela irradia a potência real deste mundo" (COMOLLI, 2008, p. 177), afirma o autor. Ao mesmo tempo fascinante, a ausência do controle também sugere aventura e desbravamento. Quem é aquele filmado? Como ele se colocará em cena? Qual o produto da relação com aquele que o filma e a câmera entre ambos? Questionamentos que, se causam apreensão, também instigam e fascinam.


Já que a dificuldade em apreender o real é uma das principais características do documentário, porque não deixá-la transparecer? Podemos dizer que o filme produzido pelos três jovens aprendizes da arte de filmar em Stolat (Pengau Nengo, Martin Maden e Bike Johnston, 1985) é basicamente sobre isso: um filme sobre a dificuldade de filmar. A partir do tema "idosos", os jovens, negros, naturais de Papua-Nova Guiné, saem pelas ruas de Paris buscando pessoas com as quais pudessem desenvolver a idéia inicial. Está dada a primeira dificuldade, a língua. Falando inglês e entendendo pouquíssimo francês, tornou-se complicado para os realizadores encontrar alguém disposto a encarar esta empreitada sem "boa comunicação". Não se sabe o porquê da escolha da velhice como tema, afinal o que mais se via era hostilidade ou desconfiança por parte dos velhinhos abordados, salvo um ou outro mais solícito, mas que não se dispuseram, mais uma vez devido ao inglês.


Tema para eles difícil, sim, mas se não tivessem enfrentado os percalços, não teriam conhecido um personagem tão especial como aquele que ocuparia os próximos planos do filme a partir de então. Potência no abrir-se para o erro, impossibilidade do roteiro, nas palavras de Comolli, é o que se vê na tela. De uma conversa banal com um homem branco sobre a localização de um metrô surgiu a possibilidade inesperada de conhecer seu avô, um senhor polonês habitante do interior da França. Sua história de vida nos é apresentada por meio da voz over de seu neto. Assistindo àquele velhinho capinando a horta, alimentando os animais, entretendo-se com o cachorro ou passarinhos, somos colocados em contraponto com suas experiências de guerras, prisões, mudanças e países. Uma vida tão pacata encobre um passado turbulento. Mas o filme não parece querer nos fazer ter piedade, dó ou vangloriar aquela pessoa que protagoniza os quadros. As falas "introdutórias" do neto, antes, reforçam ainda mais os sentimentos com relação ao avô proporcionados pelas imagens: simpatia, ternura.


A relação de aproximação entre os três diretores e o senhor deixou a questão da língua com status de “apesar”. A tomada de consciência dessa relação é dada a ver quando, dessa vez, é a voz de um dos três em off que “ambienta” a cena. A narração nos oferece suas impressões sobre o sujeito filmado, sobre a dificuldade em abordá-lo e o prazer em apreendê-lo. Apreensão esta não sem percalços, afinal passou da tentativa de uma leitura labial para uma leitura corporal, transformando-se, enfim, em cumplicidade e entrega. Enquanto ouvimos, vemos o senhor cozinhando, ele corta as batatas com calma, procura suas panelas e vasilhas, saboreia temperos, olha pra câmera, sorri e a seqüência termina com um "excelente!" após provar a receita.


Deixar que o outro dite a duração, que ele mesmo se dirija enquanto personagem do filme. Possibilitar que a mise-en-scène seja, em igual media, auto-mise-en-scène. Esses são exercícios, conforme Comolli, que o documentarista precisa trabalhar na abordagem da alteridade, um exercício de escuta, sobretudo. Escuta que, como demonstrado pelos estrangeiros aventureiros, transborda os limites da linguagem verbal. O simples senhor de 85 anos, ao estabelecer uma relação despreocupada com a câmera, cresce tanto no quadro que a sua gentileza, alegria e sabedoria podem ser traduzidas em qualquer língua, seja inglês, francês ou até polonês. Stolat, palavra de origem polonesa que dá nome ao filme e significa algo como saudação à longa vida, expressa mais que um desejo dos rapazes com relação ao senhor, sendo que é ele quem nos saúda, empunhando seu copo de vodca. Estamos, os diretores e nós, espectadores, sob seu feitiço.


Interessante, ou até controverso, como um documentário produzido por três papuas sobre um migrante polonês tenha recebido um prêmio de melhor documentário etnográfico sobre a França (Jean Rouch Film Festival, Paris, 1986). Foi a partir da impossibilidade de encontrar alguém em Paris disposto a filmar, o filme foi buscar no estrangeiro, no outro, algo que fosse capaz de falar um pouco sobre os franceses.


Referência Bibliográfica
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

por Bárbara França


Primeiro ensaio – Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro

por Fábio Figueiredo

Avenida Brasilia Formosa, documentário dirigido pelo pernambucano Gabriel Mascaro, traz à tona histórias de personagens que têm as suas vidas ligadas ao bairro de Brasília Teimosa, na zona sul do Recife. Mas apesar da localização, o bairro, na verdade, é uma área de ocupação urbana, que acabou se transformando em uma favela a beira mar. A vida rotineira e estabelecida da população é afetada quando as palatifas da orla são desocupadas para dar lugar à construção da Avenida Brasília Formosa.

Em meio a essas transformações, o documentário é construído tendo como pilares quatro curiosos personagens. Fábio, o primeiro deles, é um jovem trabalhador, que consegue dividir o seu tempo para garantir o seu sustento e, porque não, tentar se divertir. Ele é garçom em um restaurante na praia e videomaker nas horas vagas. Além disso, ainda arruma tempo para ser um tipo de coreógrafo na igreja. Fábio não teve que se mudar de Brasília Teimosa por conta da construção da avenida, assim como o segundo personagem: o menino Cauã. Horas se comportando como uma criança normal, agitada, alegre, outrora agindo de forma estranha e reprimida, o menino vive com os pais. O videomaker Fábio, em certa altura do filme, é o responsável por registrar o aniversário de cinco anos do pequeno Cauã. O mesmo Fábio que também é contratado pela divertida manicure Débora, que tem o grande sonho de ser escolhida para participar do Big Brother. Dona de seu salão de beleza na comunidade, Débora é o terceiro personagem de destaque no filme, e mostra que apesar da vida limitada na favela, é possível ser feliz. Débora se acha super bonita, vai à praia com as amigas para paquerar e tomar sua cervejinha, e curte um bom samba no fim de semana. Mais distante destas vidas mais agitadas está o quarto personagem da trama: o pacato pescador “Pirambú”. Este sim, precisou se mudar devido à chegada da nova avenida, e foi transferido para um conjunto habitacional, mais distante do mar. Ruim para Pirambú, que tem todo o seu sustento ligado à sua atividade de pesca, e agora precisa da sua bicicleta para se locomover.


Apresentados os personagens, o filme constrói, em minha opinião, uma rede de histórias brilhante. Para tanto, além das imagens produzidas para o documentário, o diretor também utiliza imagens “caseiras” feitas por Fábio. De uma forma ou de outra, todos os personagens acabam sendo contemplados tanto pelos registros “profissionais” quanto pelos “amadores”. Boas histórias que tem em comum as idas e vindas pela nova avenida, que mesmo sem vida, acaba sendo a personagem principal da história. O início desta mudança, por exemplo, é retratado através de imagens registradas por Fábio, que mostram a visita do então presidente Lula às casas suspensas na orla de Brasília Teimosa. Anos depois, ali estavam todos, após a construção da Avenida Brasília Formosa, que “cortou” a favela ao meio.

Interessante na trama é perceber que não existe uma história com começo, meio e fim. Apesar de algumas cenas passarem a impressão de uma coisa roteirizada previamente, na maioria delas não é possível identificar uma consciência dos personagens em relação ao registro. As cenas, muitas vezes são longas, sem cortes, provocando uma imersão de quem as assiste, movidas pela curiosidade em saber onde aquilo tudo vai acabar. O começo já nos dá uma ideia do que o filme pretende fazer. Pirambú aparece tecendo a sua rede de pesca, estranhamente em meio a edifícios, sem a areia da praia, sem barulho do mar... Assim como a rede de Pirambú, o cineasta Gabriel também procura tecer a sua, mesmo que às vezes elementos desconexos apareçam para deixar uma possível construção lógica mais complicada de ser feita. Avenida Brasília Formosa é mais que uma via de transporte. É também uma via de histórias, encontros e mais que tudo, uma via de ligação capaz de unir personagens simples, mas com uma riqueza de valores incrível.

"Eu, um negro": olhar, corpo e fala

Eu, um negro (1958), de Jean Rouch ocupa um lugar entre o documentário e a ficção, uma etnoficção, como denomina o próprio cineasta. Rouch propõe a um grupo de amigos em Abidjan, na Costa do Marfim, que interpretem cada um, livremente, um personagem e se encenem diante da câmera. Oumarou Ganda, por exemplo, o "herói" do filme, decide interpretar Edward G. Robinson, um famoso ator do cinema americano na época. Há aí, nos sujeitos filmados, um desejo de estar (ser) no filme, de fantasiar sobre sua própria fantasia. Não havendo até então a possibilidade do som direto, montado o filme, Rouch o exibe aos atores-personagens, pedindo que recriem, a partir das imagens, suas falas, que as improvisem.


É importante notar que a sobreposição das vozes aos corpos filmados não é um gesto de colagem, mas antes um encontro, mais do que isso, um esbarro, aquilo que não se pode dominar. É no impensado dos corpos e das falas, em sua duração conjunta que Eu, um negro parece melhor acolher aqueles que filma, com todos seus desejos e afetos impregnados na imagem (imagem, mais do que nunca, audiovisual).


A voz que fala já não ocupa lugar daquele que narra, mas também não se cola ao corpo. Fala e corpo parecem antes se friccionar, assim, mesmo que esse encontro seja virtual e possível apenas nas imagens - e não no pró-fílmico - o que ele faz aparecer posto em cena são vestígios de um real que só se dá a ver porque ficção. " Inesperado, imprevisível, o real é o que fende a cena da representação permitindo que o mundo venha perfurar o filme". (Comolli, 2008: 41)


Podemos pensar, então, a fabulação aí, entendendo-a enquanto "fluxo de fala com a memória que renova e inventa um presente sem se ater a um passado imóvel" (Migliorin, 2009: 255), como aquilo que carrega as imagens de potência, ao contrário de um ideal de verdade. A presença da fala, nesse sentido, reverbera na montagem do filme, na presença dos corpos filmados, nos planos montados, eles também que para além das vozes, em conjunto com elas, fabulam a vida. As imagens que o filme nos oferece não pretendem reproduzir a realidade "tal como ela é", nem sequer se aproximar disso. A câmera na mão - "acoplada" ao corpo daquele que filma - torna-se ela também corpo, dotada de uma expressividade que acompanha o inesperado de seus movimentos. Os planos curtos, conjugados com uma montagem rápida, inventam o presente num constante re-inventar, fabulam o presente.


Além disso, é fundamental pensarmos em duas relações: a dos corpos filmados com a câmera (aquele que filma) e a das imagens montadas com os personagens do filme, que o assistem para narrá-lo. Parece se configurar aí uma dupla mise-en-scène.


Aqueles que são filmados se prestam e se oferecem ao olhar do outro, tomado a partir do "olho negro da câmera". Mesmo que o filme se configure enquanto uma ficção que convoca, desde o início, uma performance, há aqui um saber também inconsciente deste olhar, que faz com que uma parte do sujeito filmado requisite uma tomada de postura diante da exposição: "a visibilidade da câmera como um dado imediato da consciência de ser filmado"(Comolli, p. 82). Quando os atores vão para a sala escura, assistir ao filme montado e vão gravar o som comentando as imagens não é uma força ou um saber externo a essas imagens que as atravessam, mas algo que parte de dentro do próprio filme, regido por uma mise-en-scène que nos parece ser espelhada.


Podemos pensar, então, numa auto-mise-en-scène que se dá em cena, que requisita uma postura dos corpos diante da câmera, que retorna meu olhar a mim mesmo posto em cena e haveria, talvez, aqui, uma auto-mise-en-scène que se dá diante das imagens e que requisita uma postura da fala, que, de certa forma, mesmo que, inconscientemente, acaba por perturbá-la. "Quando meu olhar volta para mim, eu me torno objeto. Essa volta do olhar para si mesmo me coloca em cena". (Comolli, p. 83). O sujeito filmado de Eu, um negro, portanto, é colocado em cena duplamente: " há uma dimensão reflexiva no olhar. Olhar. Retorno sobre si mesmo, reflexão, repetição. Revisão. Duplo-olhar." (Comolli, p. 81).


Por Hannah Serrat


Referências:

Moi, un noir (Eu, um negro), Jean Rouch, 1958, 70 min.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MIGLIORIN, Cezar. “A política do documentário”. In: FURTADO, Beatriz. Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, vídeo arte, games... (volume 1). São Paulo: Hedra, 2009. pp. 243-265.

QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Jean Rouch: o sonho mais forte que a morte. In: Devires, Belo Horizonte, v.1, n.2, p-111-146, 2004.

FIESCHI, Jean-André. Derivas da ficção: notas sobre o cinema de Jean Rouch. In: Devires, Belo Horizonte, v.6, n.1, p. 12-29, 2009.